O senhor Kayros decide viver

Ergueu-se. Foi à casa de banho. Vomitou e aqueles foram, sem dúvida, os piores vómitos da sua vida. Mas depois sentiu-se melhor. Bebeu um copo de leite frio. Estendeu-se no sofá. Estava nu e a luz da manhã inundou-lhe o corpo. O senhor Kayros não gostava do verbo “inundar”, porque lhe fazia lembrar coisas irremediáveis, quase sempre vistas através da televisão, coisas com muita destruição e milhares de mortos, mas foi nele que pensou quando viu o seu corpo branco e ossudo exposto à luz clara e imaculada da manhã. Adormeceu e quando acordou sentiu uma fome dos diabos.

Vestiu umas calças de ganga largas e uma camisola às riscas brancas e vermelhas, como as camisolas dos piratas, e saiu do apartamento. Atravessou um pequeno jardim, desceu umas escadas, atravessou uma rua, caminhou ao longo dessa rua para o lado esquerdo, desceu mais umas escadas, atravessou outra rua, desceu ainda outras escadas, muitas escadas, caminhou ao longo de um jardim à beira mar e foi sentar-se na esplanada de uma pizzaria. Um empregado veio logo ter com ele. Era alto, muito alto, e magro também, muito magro, e tinha a cara chupada, como certas peças escultóricas talhadas em madeira rija e escura. O senhor Kayros pediu uma pizza e uma garrafa de vinho tinto pequena.

Ali só estavam estrangeiros. Turistas. Casais de turistas. Gordos, feios e vermelhos de muito sol. Falavam pouco. A bem dizer, estavam calados, a comer, a beber e a olhar em redor. O senhor Kayros comeu e bebeu e olhou em redor e no fim sentiu-se muito bem, como se a ressaca, o peso dos cornos e a angústia do desemprego o tivessem abandonado subitamente.

O senhor Kayros saiu do restaurante e caminhou ao longo do jardim à beira mar. De repente, apercebeu-se de que estava sozinho no jardim, se calhar até no mundo. A consciência deste facto abateu-se sobre si como o cofre mais pesado do universo. Lá dentro havia uma fortuna em forma de estrela que não servia para nada. E foi então que avistou três pessoas caminhando na sua direção. Eram turistas. Três velhos de calções ridículos e de camisas havaianas ridículas. Os três pararam ainda ao longe e ficaram pasmados a olhar para um eucalipto que lá havia. O eucalipto era a árvore mais imponente de todo o jardim, porque o jardim era novo e o eucalipto já lá estava há muito tempo. O senhor Kayros, cada vez mais perto, ouvia os três velhos a falar e percebeu que eram alemães ou talvez austríacos ou lá o que fosse que fale alemão. Quando estava mesmo quase a chegar ao pé deles, os três deram meia volta e voltaram para trás, afastando-se gradualmente.

O senhor Kayros parou à beira do eucalipto e contemplou-o. Não era um eucalipto muito bonito, não senhor, mas possuía a enorme majestade de qualquer árvore e a sombra que fazia convidava-o a estender-se na relva, a fechar os olhos e a ouvir o mar. O senhor Kayros estendeu-se na relva, fechou os olhos e ficou a ouvir o mar.

Acordou duas horas depois, por causa do frio que anunciava o fim do dia, ou o princípio da noite. Quando abriu os olhos, percebeu que estava de barriga para baixo como um náufrago numa praia verde, um pirata perdido num mar de terra. Deixou-se ficar assim durante um certo tempo, até que se sentou encostado ao tronco do eucalipto, virado para o mar. O sol estava mesmo a desaparecer à sua frente e as ondas cintilavam e as nuvens ardiam. O senhor Kayros olhou em redor. Agora, havia muita gente a passear no jardim. Ao fundo, mas não muito longe, avistou uma rapariga de cabelos longos, negros e encaracolados à beira de um varandim, debruçada sobre o mar a apreciar o pôr-do-sol e era uma rapariga muito bonita, toda ela suavidade e brisa que passa. A rapariga olhou para ele por um breve instante, como se fosse a estrela dentro do cofre mais pesado do universo. Depois, abandonou o varandim e afastou-se.

O senhor Kayros levantou-se, sacudiu as calças e a camisola e caminhou na direção oposta à da rapariga. Alguns metros à frente, sentou-se num banco defronte do oceano. Às tantas, sentiu que a tarde estava calma e linda de morrer, tão ao contrário do seu estado, tirando a vontade de morrer, que era comum à beleza da tarde e da sua vida. Mas naquele dia, tal como nos outros até hoje, tantos anos depois, ele decidiu viver.

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