O Silêncio não é Neutro

Ao longo dos últimos cinquenta anos nunca, como nos últimos três, se ouviu falar tanto de imigração em Portugal.

É um fenómeno curioso porque, Portugal tem sido, tradicionalmente, um “País Emissor” em termos de migrações. É, aliás, um dos maiores em termos de percentagem da população, com quase 2 milhões de pessoas nascidas em Portugal com residência permanente no estrangeiro. Se contabilizarmos também os irregulares descendentes de segunda e terceira geração com nacionalidade portuguesa, andaremos perto de cinco milhões.

De onde vem, então, o recente crescimento das “preocupações” com as migrações e do discurso anti-imigração?

É essencialmente artificial, fruto de uma estratégia internacional por parte de grupos antidemocráticos extremistas, apostados no crescimento do medo e do ressentimento.

Porquê? Porque o medo e o ressentimento limitam a capacidade de discernimento e o pensamento racional.

E nesse estado, é mais fácil cair na armadilha da troca de direitos coletivos por direitos individuais (“desde que eu me safe, quero lá saber dos outros”), e é mais fácil ceder à suposta solução fácil de concentrar todo o poder numa figura providencial, austera, cheia de certezas sobre a moral alheia, mas muito “flexível” em relação à sua própria.

Em vez de se resolver os problemas, é sempre mais fácil culpar os mais fracos, por muito irracional que seja. Alguns exemplos:

O aumento do preço da habitação. Certamente já ouviu dizer que a culpa é da imigração. As justificações são ao gosto do freguês e contraditórias, mas se não houver pensamento crítico, ninguém nota: «os imigrantes são muitos, precisam de casa e isso provoca um aumento da procura. Pelas leis do mercado, um aumento de procura leva ao aumento de preços». Parece razoável, mas… Se a grande maioria da imigração recebe salários comparativamente baixos e quer mandar remessas de dinheiro para o país de origem, nunca tem condições de comprar casa a pronto, nem de fazer crédito, portanto esse aumento de procura, a existir, será residual…

Muda a justificação: «Ah, mas é nas rendas: como ficam muitos na mesma casa, se alugarem ao quarto ou à cama, a pagar 100 ou 120 euros cada um, com 8 num T2 dá 1000 euros e por isso quem tem casas para arrendar ganha mais do que se for a uma família». Parece razoável, mas… Com 29 milhões de turistas estrangeiros por ano, não seria mais vantajoso fazer um Alojamento Local (AL) e arrendar o tal T2 a 100 ou 120 euros (ou 150, ou 200) por dia e receber mais do triplo por mês? Esse até poderia ser um dos problemas, a diminuição da oferta por causa da quantidade de casas que saíram do mercado da habitação permanente para AL… Mas aí já não se conseguia pôr a culpa nos mais fracos…

Muda o foco: «E a criminalidade violenta?»

É um problema, que temos de combater. Apesar de nos últimos anos ter baixado, há muito mais notícias de “faca e alguidar” nos órgãos sensacionalistas e nas redes sociais, muitas vezes descontextualizadas, recicladas de outros países ou de alguns anos. Pouco interessa que os crimes violentos mais cometidos em Portugal sejam ligados à violência doméstica (com uma mulher ou criança assassinada a cada duas semanas, em média), na sua grande maioria por cidadãos nacionais “de bem”. Não dá cliques…

«Sim, até pode ser uma injustiça. Mas o que é que isso interessa? Por que é que defendes os outros em vez dos teus? Olha, eu cá não me meto em políticas, nem ideologias. Sou neutral», atira antes de se despedir com um encolher de ombros.

Chegámos a isto: Se não dá cliques, se não gera indignação, como é que se mete medo às pessoas? Como é que vão aceitar caladinhas todos os abusos.

O silêncio perante as injustiças nunca é neutro

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