Ao longo do último século, a Madeira tem sido palco de sucessivos apelos por um modelo de autogoverno que respeite a sua identidade, geografia e capacidade histórica de iniciativa. No entanto, importa ser claro: qualquer tentativa de implementar um regime fiscal próprio na Região Autónoma da Madeira, sem assegurar o que o direito europeu designa como “autonomia plena”, será apenas mais um exercício de retórica vazia, um logro jurídico e político ao povo da Madeira e do Porto Santo.
O Direito da União Europeia não proíbe que regiões tenham regimes fiscais próprios. Pelo contrário, reconhece tal possibilidade desde que determinados critérios estejam preenchidos. Falo, naturalmente, dos critérios estabelecidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no emblemático Acórdão Açores (C-88/03), e sucessivamente aplicados em jurisprudência relevante nos Casos País Basco e Gibraltar.
A doutrina que ali se fixou é cristalina: para que um território infraestatal (como uma Região Autónoma) possa conceder benefícios fiscais ou estruturar um regime fiscal próprio sem que este seja considerado um “auxílio de Estado seletivo” proibido ao abrigo do artigo 107.º, n.º 1 do TFUE, é necessário cumprir cumulativamente três critérios:
1 – Autonomia institucional: a região deve ter autonomia política e administrativa própria, distinta do Governo central; 2 – Autonomia processual: as decisões devem ser tomadas sem que o Governo central possa intervir diretamente na fixação das taxas de imposto, e sem que se observe uma obrigação da autoridade infra-estatal ter em considerações os interesses do Estado; 3 – Autonomia económica: as consequências económicas que resultam da redução da taxa de imposto têm de ser suportadas pela própria região e não podem ser compensadas por contribuições ou subvenções, provenientes de outras regiões ou do Governo central.
O último critério, autonomia económica, é o mais negligenciado nos discursos políticos, mas é o que distingue uma autonomia simbólica de uma autonomia eficaz.
Cumprir com os critérios no contexto português atual exige uma reconfiguração profunda do nosso regime autonómico. Não basta alterar leis ou o Estatuto Político-Administrativo da Região. Exige-se uma mudança de paradigma, um estatuto constitucional e financeiro comparável ao que têm os territórios ultramarinos britânicos ou, mais contemporaneamente, o que Macau e Hong Kong têm no seio da República Popular da China.
Não é por acaso que, em 1922, os autonomistas madeirenses mais lúcidos defendiam um modelo de “colónia autónoma” semelhante aos territórios ultramarinos britânicos e às dependências da Coroa com autogoverno. O que se defendia então, e que hoje continua a ser exigência de justiça, era um modelo em que a Madeira legisla, executa, financia e responsabiliza-se, sem ser infantilmente tutelada por Lisboa ou desorçamentada pelo Estado. Sem laços de solidariedade nacional (em casos extremamente excepcionais como catástrofe natural ou guerra) ou considerações sobre os interesses económico-tributários do Estado central.
Enquanto estes três critérios não forem cumpridos, qualquer regime fiscal dito “autónomo” será apenas uma concessão política, vulnerável, reversível, e provavelmente ilegal à luz do direito europeu.
É neste sentido que insisto: qualquer proposta de autonomia fiscal que não seja acompanhada por verdadeira autonomia plena, com responsabilidade orçamental e legislativa, é uma traição disfarçada de conquista. É fazer crer ao Povo que tem as rédeas do seu destino, quando continua apenas a pedir licença.
A Madeira e o Porto Santo não podem continuar a ser alvo de promessas dúbias e experimentações tímidas. Ou se assume, com coragem, a via de uma autonomia plena real, à luz dos princípios jurídicos europeus e da dignidade política que a Região merece, ou perpetuar-se-á a subalternização da Madeira sob o pretexto de uma autonomia incompleta.
As regras estão claras. Os modelos comparáveis existem. A Madeira não é menos capaz que as Ilhas Caimão, Gibraltar ou Macau. Mas para ser tratada com essa dignidade, tem de a exigir, e sobretudo, compreendê-la.