Sou médica veterinária e se voltasse atrás no tempo, esta seria sempre a minha escolha profissional, no âmbito das ciências biomédicas. Entre amigos, muitos deles professores – uma outra profissão com elevados níveis de burnout e transtornos da saúde mental – tenho o hábito de elogiosamente, sim, mas também em tom de provocação, dizer-lhes” a profissão de Professor é, sem dúvida, a mais importante de todas; mas a de médico veterinário é a mais bonita!”. Poderia ser, mas na verdade nem sempre o é.
A maior parte de nós escolhe a profissão pelo seu amor aos animais. Foi o meu caso. Amor esse, que tem movido uma grande parcela da minha vida que é a causa animal seja a nível profissional e académico, seja a nível cívico e político. Mas o amor pelos animais pode ser precisamente o que faz sofrer tantos médicos veterinários, sobretudo os que exercem clínica (e nem menciono os que estão todos os dias nos canis sobrelotados e sem meios financeiros, ou os que estão nas linhas de abate a zelar pela segurança alimentar de todos nós…). Estes profissionais lidam diariamente com o sofrimento e com a morte (a eutanásia, por exemplo, é dos atos mais dolorosos para um médico veterinário!), pois a medicina veterinária não se traduz só por aqueles momentos felizes da primeira consulta com animais novinhos, bonitos como “peluches” e saudáveis, ou quando se consegue tratar a saúde e salvar a vida de um animal. Como descreveu por estes tempos, nas redes sociais, uma colega clínica, em desabafo doloroso: “todos os dias picamos e magoamos animais, porque temos de o fazer (…); o meu sonho é um dia poder deixar de ser médica veterinária”. Para mais, estes colegas lidam com outras questões sociais, como clientes que não conseguem suportar os preços da prática clínica veterinária (eu, mesmo sendo veterinária, com um dos meus gatos tenho de gastar trimestralmente 150 euros num medicamento para a diabetes mais a ração especial que custa mensalmente cerca de 40 euros! – e se não fosse veterinária teria de despender muito mais!). Recordemo-nos: vivemos num país em que a veterinária é a única área da saúde que paga IVA e para mais com um valor tão elevado, o que é demonstrativo da importância que a classe política e governativa dá à causa animal, à segurança e saúde pública, à saúde pública veterinária e ao One health -ou seja, todas as saúdes reunidas para uma única saúde global.
O CDC (Centers for Disease Control and Prevention) revelou que a taxa de suicídio é 3,5 vezes mais alta entre médicos veterinários do que entre o resto da população em geral (sobretudo nos homens); e em Portugal, numa entrevista de 2023, o antigo bastonário dos médicos veterinários afirmava que a “medicina veterinária é a profissão que tem a maior taxa de suicídio em Portugal”.
São várias as variáveis que contribuem para estas conclusões, a que não são alheias, obviamente, as características de personalidade de cada um, mas cujas causas advêm sobretudo do ambiente de trabalho altamente stressante e para mais complexo, afinal é com vida e com entes biológicos (animais e humanos) que trata esta profissão. Por outro lado, é ainda uma profissão pouco valorizada – os veterinários, na sua maioria auferem de salários baixos e estão sujeitos a precariedade laboral; más condições e relações de trabalho; e muita pressão patronal, padecendo mesmo de assédio moral, e não raras vezes têm “hora para entrar ao serviço mas não de sair, e sem que sejam justamente recompensados ) – tudo isto, a par de outros fatores de risco, compromete a saúde mental destes profissionais, potenciando-lhes a “fadiga de compaixão”, a ansiedade, o burnout, a depressão, sintomas de stresse (em 2021 a VetsSurvey, afirmava que Portugal é o país do mundo com maior nível de stresse na área da veterinária) e… no limite, intensificam a ideação suicida.
Por fim, uma nota sobre os donos de animais e um apelo: sejam corteses! Muitos donos exercem tal pressão sobre os médicos veterinários que, no limite, pode ir da agressão verbal, difamação e até mesmo à ameaça física. Exigem (e bem) o melhor trato para os seus animais, mas esquecem-se que é essa a missão de cada um destes profissionais e que na sua larga maioria a cumprem, por vezes abnegadamente, mas na medicina não “há bolas de cristal” que adivinhem de imediato o diagnóstico, e nem sempre há cura para as situações diagnosticadas. E há que compreendê-lo, por mais que custe e doa (os veterinários também têm animais e sabem bem a dor de os ter doentes e de os perder…).
Aos colegas, nunca é demais lembrar: a Ordem dos Veterinários dispõe de apoio psicológico gratuito – não hesitem em recorrer, se necessário!