Faltam-me o teu olhar grave e os teus silêncios divinos, faltam-me as tuas palavras – milagres –, os teus cigarros intermináveis e a casa que me abriste. O mar que tanto amavas. A ilha que eras – és ainda – Falta-me a tua fé, que eu desconhecia. Faltas-me como um pai etéreo e impossível que eu não esperei, como um credo esquecido que podia curar. Como alguém que me viu e soube; quase tudo.
Nunca falo sobre a falta que me fazes, por toda a parte, mas escuto-a por dentro, todas as vezes, seja na alegria ou no desespero, no vazio de uma rua que evito, na janela que nunca mais se inclinou sobre a minha cabeça.
Falo-te agora – até à tua sagrada intimidade.
Querido Maurício, demorou muito tempo até nos encontrarmos. Soube, porém, no dia em que te conheci, que afinal nunca havias sido um estranho. Tivemos dez anos para ser. Apesar de tudo, foi uma vida, um tempo em que pude, nalguns momentos, ver-me como tu me vias, não temer nem o brilho nem a escuridão. Entrar. E foi por causa dos teus olhos que aprendi a amar as sombras e a não conter os meus silêncios ou a mácula da melancolia. De certa forma, pude forjar uma outra infância – o tempo tem a ordem que lhe dermos.
Quando morreste, não me senti perdida nem lamentei as coisas que não cheguei a dizer-te. Sei que me ouvias dentro de uma absoluta ternura. Não te perdi, porque perder é outra coisa, de uma outra ordem que também tu me ensinaste.
A arte é uma queimadura que serve para não perder, para que permaneça a comoção sobre a luz mais terrível, quando o frio é uma ilha e a água já não presta.
Trabalhámos intensamente, fomos atentos, com paixão; e se eu consegui entregar a tal beleza de que falavas foi por tua causa e por causa da tua Cecília; tão discreta quanto incisiva. No fim – não hei-de esquecer-me nunca do nome dela na tua boca, das insondáveis falas das vossas mãos enquanto uma nesga de mar entrava. A beleza maior, se não toda, deram-ma vocês. A intimidade, esse mistério tão grande que tu dominavas e cultivavas. Que eras tu afinal. “A intimidade é o quotidiano” – disseste-me, num dos nossos últimos encontros, na Escola da Vila, no Porto Santo, onde conversámos longamente. Dessa conversa nasceria o meu texto para a revista Umbigo sobre o tema central de uma edição dedicada à Porta 33: The school effect – um breve ensaio onde pude contar o milagre das vossas mãos dissecando a antiga Escola, reservatório de memórias transformado em residência artística, oficina, casa reemergida do fundo do mar, do fim da terra.
Na noite anterior, tu e a Cecília acomodaram-me numa das salas de aula, um quarto improvisado com um dossel erguido do chão e a luz quente dos quartos da infância. Belíssimo – o calor da terra sob o corpo. “A vida é uma coisa maravilhosa” – o teu pensamento em voz alta. A maravilha de ti, o teu corpo todo sem temer, nem a vida nem a morte; só talvez um pesar pela finitude.
Tão frágil é o corpo e a sua impressionante nudez. Os seus rumores precários. Se ao menos uma vida inteira pudesse bastar-lhe.
Falta-me a tua íngreme sensibilidade diante de todas as coisas, falta-me a tua crença na carne dos homens por dentro do pensamento. Revejo a tua inexorável pureza que nenhum mundo pôde esvair, a ausência de todo o mal na água dos teus olhos, e, à distância, o teu riso profundíssimo atravessando o fumo. Uma beleza que já não consigo acabar. E sei que há uma parte de mim – um ancestral assombro, um vapor – que será sempre a ferida coberta de que me lembravas no correr dos dias, mesmo na ausência e no silêncio. Uma árvore tombada sobre todo o esquecimento. Um desvio.
Maurício. Entre o teu nome e a ilha, não há já espaço. Anjo perene – uma porta onde virá, para sempre, bater o mar.