São agora sete horas e dez minutos e o padre Salvador Silva passa revista às oficinas da Missão. Uma revista apressada, só para pôr os trabalhadores em sentido. A ronda será repetida várias vezes ao longo do dia, sempre com o mesmo objetivo – pôr os gajos em sentido, puta que os pariu. Em duas ou três ocasiões ele é forçado a levantar a voz e grita com os operários, insulta-os, ameaça-os com o despedimento.
– Hão de chorar, cambada de vadios! – Diz ele.
O padre Salvador Silva avista cinco pessoas no alpendre das confissões. Aquele é um trabalho que devia ser dos diocesanos e ele nunca o quis fazer. Nem sequer para dar missas se tem paciência, quanto mais para confessar uma carga de ignorantes. Se não fosse a pressão do bispo, ele jamais haveria de confessar ou dar missas. Ficaria só na Missão a idealizar novas formas de investir e faturar, sobretudo de faturar. Seja como for, em menos de oitenta segundos o padre absolve os cinco pecadores.
– Estás perdoado – diz ele ao ouvido do penitente e nem ele nem o penitente acreditam naquilo.
Depois, fica a observar as montanhas imersas no nascimento do dia. Porém, as montanhas em África parecem-lhe falsas e ele vê-as como qualquer europeu vê um animal selvagem em liberdade: um segundo de pasmo real e depois uma recordação inócua, quase uma mentira. A verdadeira montanha é aquela que ainda esta noite lhe apareceu em sonhos. A verdadeira montanha é que sabe tudo, é a montanha original. A verdadeira montanha é aquela que estava lá no dia em que ele viu a mãe despir-se para um camionista, um tipo gordo, sebento e peludo, um tipo sem graça nem polimento, um rafeiro, um cara-de-ribeira que assentou três palmadas nas nádegas brancas da mãe e lhe fez saltar as lágrimas, a ele, o pequeno Salvador, que tivera de se esconder à pressa dentro do guarda-fatos quando os dois irromperam pelo quarto adentro num jogo de sexo e engano. A verdadeira montanha é a que estava lá quando o padre da aldeia o sentava no colo e lhe acariciava as pernas e subia a mão por dentro dos calções e lhe dava beijos picantes, beijos de barba rija, nas faces coradas de susto e vergonha e, como um ogre do mel, lhe sussurrava ao ouvido:
– O menino serve muito bem a Deus!
O ogre melífluo na penumbra da sacristia:
– Sim senhor! Estou muito satisfeito com o menino!
A verdadeira montanha é a que estava lá quando a mãe, num arrebatamento de tirania e egoísmo, o mandou para o Seminário dos Santíssimos Padres do Corpo de Deus e o condenou a uma dor perpétua que lhe roubou a voz e os talentos, uma dor que o impediu de fazer o bem, o mal ou o que quer que fosse durante anos sem fim – ler, escrever, falar, dormir, sonhar – nada. A verdadeira montanha é a que estava lá, sobranceira à sua aldeia, na Europa tão civilizada, e compreendeu a imperiosa necessidade que ele sentiu de partir para um território distante, ou seja, um território fácil, pois todo o território distante é sempre fácil, por mais horror que lá se teça e ofereça, um território onde ninguém o conhecesse, onde ele pudesse ser senhor absoluto do seu desencanto, da sua dor, de todos os seus desejos. Para isso, diga-se de passagem, não há nada como um país em África, sobretudo se estiver em guerra. A verdadeira montanha é esta, a montanha mágica perante a qual os rochedos africanos, com as suas formas elegantemente remotas, são falsos e irrisórios, incapazes de sustentar o bem e o mal da vida.
O padre Salvador Silva espreita o pessoal da casa da Missão, principalmente as mulheres que preparam a comida, arrumam os quartos, lavam a roupa e passam horas a dar à língua, processo durante o qual fazem circular informações, contrainformações e desinformações a respeito de todos, de tudo e de mais alguma coisa, como acontece nos noticiários. O padre gosta de escutá-las para sentir os pequenos podres de cada um e aproveita para adicionar outras fraquezas que ele conhece ou inventa sobre cada um e acha serem úteis para conhecimento de todos e confusão geral.
Depois, no meio da conversa, perde-se na contemplação das nádegas proeminentes das mulheres e, de vez em quando, assenta-lhes uma palmada quando elas menos esperam e excita-se com os seus gritinhos histéricos.
– Senhor padre, o que é isso?!
Ele ri. O padre Salvador Silva ri. São bem firmes, as nádegas das pretas, pensa ele. Parecem cavalos. Gazelas talvez. Gazela é um termo mais africano, mais apropriado ao caso, pensa ele.