Humor e sacrilégio

Na passada sexta-feira, no julgamento que opõe o gozo ao acne, a juíza que a ele preside afirmou que no humor nada é sagrado. Será mesmo assim?

Penso não ser controverso dizer que, em minha casa conto a piada que me apetece, mas que em casa alheia devo ter em conta a audiência no momento da escolha da anedota. Também penso não dizer nada de novo se afirmar que, quando exageramos nas graçolas (tanto na quantidade, como na acidez), será natural que o alvo se melindre. Se se melindrar é natural que reaja e mostre o seu desagrado, ou até que riposte, inclusivamente com violência. Se outros se melindrarem, tomarem como deles a susceptibilidade alheia, também será natural: a empatia é desejável para a vida em sociedade. Até aqui estamos a falar de moral, de convivência entre indivíduos e de personalidade. Estamos a falar de visões e formas de sentir individuais e únicas, apesar de desejavelmente o mais semelhantes possível em animais sociais, como o ser humano. Neste âmbito, podemos dizer que há limites sociais ao humor, ou seja, que devemos ter a susceptibilidade do nosso interlocutor em conta, para que possamos reivindicar o mesmo respeito pela nossa susceptibilidade. Até mesmo para que não percamos um aliado, ou criemos antipatia em relação a nós, é aconselhável não melindrar o outro.

O problema destas susceptibilidades é que não são todas iguais. O sagrado, que a juíza afirmou não existir para o humor, é diferente para cada indivíduo, ou seja, há tantos limites sagrados quantos seres humanos na Terra. Se nos viramos para terceiros para que regulem os limites, para que forcem a juíza a recuar na sua afirmação, temos de definir o sagrado primeiro. Quem o fará? Em que parâmetros? Qual o nível de consenso exigido? Qual o preço a pagar?

O humor é, na sua natureza, disruptivo e provocador. Quando o meu filho de sete anos chegou a casa e me quis contar uma graçola, perguntou-me o que era um fantasma. Perante a minha admissão de ignorância, ele disse-me que era um pum flutuante e desatou a rir-se; e eu com ele (um pouco menos, confesso, que o miúdo riu-se mesmo muito). E eu não me ri por simpatia pelo meu filho; ri-me porque fui surpreendido, chocado com a disrupção da realidade que aquela lógica me provocou. Eu não passei a acreditar que um fantasma é um pum flutuante, mas achei, com surpresa e choque (afinal, é uma piada algo escatológica), que a lógica tinha mérito. Percebi o que o fez rir.

Outra coisa que humor faz é crítica social. Sempre que se faz crítica, seja ela gastronómica, literária, cinematográfica, etc., o risco de ofender é grande. Quando, por exemplo, o músico Tatanka disse, não sei a que concorrente de um famoso concurso de talentos, “entraste ali num campo muito delicado qu’é: assassinaste uma música destas e eu tive de te mandar parar”, está a ser bastante violento na sua crítica. Tenho a certeza de que o alvo se deve ter sentido bastante ofendido e, se for uma pessoa susceptível, não duvido que se possa ter sentido deprimido e sentido o acne a chegar, nem que fosse por momentos — e não era humor. Deve o artista/júri ser, por tão dura crítica, alvo do sistema judicial? Há limites na crítica pública?

O concorrente, naquela situação, ofereceu-se à crítica? É verdade. Não se oferece à crítica quem se lança, voluntariamente, na vida pública e em ocupações em que a aceitação do público é essencial?

No humor nada é sagrado? O sagrado é subjectivo. A lei deve ser objectiva.

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