Quando eu entrei pela primeira vez num avião tinha para aí uns 17 anos e era virgem a todos os níveis, da superfície da carne ao fundo da alma. Nem sequer conhecia o Porto Santo, vejam bem, e lá voei para Lisboa e depois fui de autocarro até Torremolinos, em Espanha. Para dizer a verdade, não me lembro muito bem daquilo, porque, como qualquer adolescente numa viagem de setimanistas, andava sempre bêbado e a certa altura até fumei uma ganza.
Bem, o charro deixou-me de tal forma marado, que meti na cabeça que poderia atirar-me da varanda do hotel para a piscina, sendo que me encontrava no sexto ou sétimo andar e nem sequer tenho a certeza se havia piscina lá em baixo. Se calhar não havia, mas eu estava convencido de que seria capaz de voar. Então, o meu companheiro de quarto esperou que eu adormecesse e colocou toda a mobília a tapar a janela, algo que me deixou absolutamente perplexo quando acordei, pois não fazia a mais pálida ideia do que tinha acontecido. Ele é que me contou tudo.
Fiquei traumatizado e nunca mais quis saber de ganzas. Impus-me uma proibição serva. Droga nunca mais, disse de mim para mim, embora tenha furado a proibição em duas ou três ocasiões ao correr dos anos. Mas voltei sempre a impô-la ainda com maior severidade. Droga nunca mais.
Já em relação ao álcool, que também é uma droga, sou mais permissivo. Somos todos, não é verdade? Claro que somos. Tá certo que nunca mais tomei uma bebedeira de caixão à cova, como naquele tempo, Deus me livre, mas adoro beber uma cervejinha gelada a meio da tarde e adoro um vinho tinto ao fim do dia, adoro o convívio à volta dos copos e também adoro a solidão que afogo em cada copo.
Bom, voltando à primeira viagem… Não fiquei parado em Torremolinos, onde nem sequer pus os pés na praia. Aproveitei para apanhar um ferry, algures ali perto, e fui a Ceuta. Gostei muito da cidade, aonde cheguei com uma ressaca descomunal. Passei lá o dia e só comi duas laranjas. Bebi muita água, lembro-me disso, e também me lembro de ter comprado um casaco de cabedal. Gostei muito de Ceuta. Havia na sua luz qualquer coisa que me remetia para a luz da minha infância. Ali, naquele dia, o meu passado deixou de ser memória e torna-se um tempo presente, um verbo conjugado no gerúndio. E esta, meus amigos, foi a primeira vez em que senti que não pertencia a lado nenhum e a minha casa podia ser em qualquer sítio.
Noutro dia, fui de camioneta até Málaga e entrei pela primeira vez num El Corte Inglés, mas não comprei nada, e visitei um parque de diversões, onde andei na montanha russa e conduzi um kart, três voltas à pista, e, mais importante ainda, conheci uma miúda espanhola lindíssima, morena, com o cabelo castanho claro compridíssimo. Ficámos um tempão a falar e ela era mesmo muito simples e simpática e ao mesmo tempo muito sofisticada, mas eu era um rapaz das zonas altas de Santo António e, se calhar, estava a confundir a sua alegada sofisticação com o meu real fascínio por ela e depois regressei a Torremolinos completamente maravilhado e nessa noite, vejam só, conheci outra miúda numa discoteca.
Era uma discoteca enorme, tinha até a réplica de um caça inglês da Primeira Guerra Mundial pendurada no teto, e estava cheia de gente e, de repente, eu vi aquela miúda a sorrir para mim. Não era tão bonita como a outra, mas estava a sorrir para mim e então fui ter com ela e disse-lhe ao ouvido:
– Olá!
Ela não percebeu, em parte por causa do barulho, em parte por causa do meu sotaque.
– Qué? – Disse-me ela ao ouvido, sempre a sorrir e o seu sorriso era encantador.
– Olá! – Repeti.
E ela, sempre a sorrir, aquele sorriso lindo, retorquiu:
– No entiendo.
Eu pensei: Bem, vou organizar uma frase mais complexa para ver se me faço entender.
– Olá, como estás?
– Ah, bien! Y tú, cómo estás?
Estava bêbado, claro, e regressei de Espanha tão virgem como quando lá chegara. No entanto, para despistar os meus amigos, comprei uma camisola com doze bonecos estampados em doze posições do Kama Sutra. Sim, eu continuava virgem da superfície da carne ao fundo da alma. Pobre de mim. Porém, no ano seguinte fiz a minha primeira viagem ao Porto Santo…