Nos últimos dias temos vindo a assistir à intensificação da polémica em torno do encerramento temporário — ou parcial — de serviços de urgência em várias localidades do país. A justificação apresentada por diversas administrações hospitalares e pela tutela tem sido a dificuldade em assegurar escalas médicas durante o verão, particularmente em especialidades específicas como Ginecologia-Obstetrícia, Cirurgia ou Ortopedia.
Para os profissionais, mas principalmente para os utentes, esta situação, na prática, revela a fragilidade estrutural do Sistema Nacional de Saúde e traduz-se numa corrosão crítica da qualidade e da segurança dos cuidados prestados.
Enquanto enfermeiro dedicado à investigação na área da qualidade e segurança dos cuidados de saúde, particularmente em contextos de elevada complexidade, não posso deixar de expressar a minha profunda preocupação face ao impacto concreto que determinadas decisões têm na prestação de cuidados à população. A qualidade em saúde não se limita à existência de estruturas organizacionais ou à implementação de protocolos; exige, de forma imperativa, a garantia de acesso atempado, a continuidade dos cuidados, a eficácia da resposta prestada e o respeito incondicional pela dignidade das pessoas.
A deslocação de doentes por dezenas, até mesmo centenas, de quilómetros para acederem a um atendimento num serviço de urgência constitui um fator de risco muito elevado para a sua condição clínica.
Há grávidas que, perante o encerramento da urgência obstétrica mais próxima, são obrigadas a procurar alternativas em distritos próximos. Há idosos com dor torácica que esperam horas numa triagem sobrelotada porque os hospitais de referência estão saturados com a afluência de utentes de várias regiões. Estas situações não são meros problemas de logística, são problemas reais que colocam em causa a segurança e a vida destas pessoas.
Quando serviços de saúde que já operam no limite da sua capacidade são obrigados a absorver o fluxo adicional de utentes provenientes de outras regiões, muitas vezes sem o correspondente reforço de equipas ou de recursos, as repercussões em cascata tornam-se inevitáveis. Esta sobrecarga traduz-se em atrasos significativos na avaliação clínica — utentes que deveriam ser observados no espaço de trinta minutos aguardam, por vezes, mais de três horas — o que compromete a oportunidade das intervenções prioritárias e contribui para a degradação das condições de trabalho das equipas de saúde.
A resiliência dos profissionais não pode continuar a ser o último pilar de um sistema à beira da rutura.
A gestão de recursos humanos em saúde reveste-se, indubitavelmente, de grande complexidade, especialmente num contexto marcado pela escassez de profissionais, desmotivação e exaustão das equipas. Contudo, o encerramento de serviços — frequentemente comunicado em cima da hora e sem a devida clarificação ou garantia de alternativas seguras — acarreta consequências particularmente gravosas para os grupos mais vulneráveis: aqueles que residem em zonas periféricas ou rurais, os que possuem menor literacia em saúde, e os que enfrentam maiores barreiras no acesso aos cuidados. Esta prática representa uma séria violação do princípio da equidade no acesso à saúde, um dos pilares fundamentais do Serviço Nacional de Saúde.
Os cuidados de saúde não podem depender da disponibilidade de “tarefeiros” ou de decisões tomadas da noite para o dia. É preciso planeamento estratégico, investimento em vínculos estáveis e valorização efetiva de todos profissionais de saúde que, mesmo perante as maiores adversidades (como na pandemia), asseguraram e continuarão a assegurar o funcionamento diário dos serviços de saúde.
A qualidade e a segurança dos cuidados de saúde são pilares inegociáveis de um sistema que se quer universal, acessível e digno. Não podem ser variáveis ajustáveis em função da continuidade territorial ou do calendário de verão.