Hoje, volto a temas antigos, com uma nova roupagem. Muito se tem debatido, nestes últimos dias, a imigração ilegal. A exploração e o tráfico humano. Não consigo dissociar uma da outra. As duas matérias, convocam-nos para um debate sério. Muito para além de se analisar a (péssima) ideia de se extinguir, em outubro de 23, o SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sem se garantir a entrada em pleno funcionamento da AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo. Uma trapalhada. Mais uma, do Partido Socialista, que ainda se lembrou de distribuir as competências policiais do SEF entre a Polícia Judiciária, a PSP e a GNR. A imigração ilegal, também chamada imigração clandestina ou indocumentada, traz agregada a si, um rol de consequências. Para todos. Para os imigrantes e para o país de destino, para os países que os acolhem. O acolher, neste momento, tem muito que se lhe diga. Tanto por cá, como pela velhinha Europa. Exemplos não faltam. Nunca faltaram. A condição de imigrante pode envolver riscos variados. E estão à vista de todos. Desde a segurança, à exploração por redes criminosas, a dificuldades de acesso a serviços básicos (educação, saúde, habitação, entre outros) e a trabalho informal, com condições precárias. Entre o que nos entra pela casa adentro, através dos media, e o que se vai ouvindo falar, nas ruas, de norte a sul do país, há muito humanismo que se perde. Estamos a falar de gente.
A humanidade – como somos, o que somos e o que fazemos – resulta da troca milenar entre genes, culturas e saberes. Somos fruto dessa diversidade biológica e cultural. As Jornadas Europeias de Arqueologia (JEA), que decorreram há duas semanas, coordenadas a nível europeu pelo Institut National de Recherches archéologiques Préventives (INRAP) e, em Portugal, pelo Património Cultural, I.P., deram a conhecer muito dessa nossa humanidade, sugerindo, pelo próprio tema proposto, que todos temos “O mundo inteiro em cada um de nós”. E temos, de facto.
No filme ‘Contos do Esquecimento’, realizado em 2023, por Dulce Fernandes, que se começou a escrever a partir da escavação arqueológica que decorreu numa lixeira em Lagos, no Algarve, coloca-se em evidência essa nossa diversidade.
Na altura, identificaram-se 158 esqueletos, homens, mulheres e crianças, depositados, no final do século XV, nessa lixeira medieval algarvia. O filme, é um testemunho inequívoco do papel de Portugal no tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas, que estreou no festival internacional de cinema IndieLisboa International Film Festival. Soube que a 3 de julho entrou para o grande ecrã em algumas salas de cinema de todo o país. Por aqui, só assisti ao trailer, de 1:38, via YouTube. Tive pena. Pelo que retrata.
Pelo peso de um problema antigo, que atravessou séculos: a exploração e o tráfico humano.
Era previsível que no Vale da Gafaria, em Lagos, fosse encontrado um cemitério de doentes com lepra, ou gafos, como eram então chamados. Mas, no século XV, Lagos era o maior mercado de escravos em Portugal e um ponto de apoio às incursões militares portuguesas em África, pelo que não foi com total surpresa que naquele terreno tenham sido descobertos os esqueletos misturados com lixo. Uma coleção única, no mundo, que está atualmente encaixotada, armazenada numa casa em Coimbra.
Os esqueletos pertencem a escravos traficados para Lagos entre os séculos XV e XVI, que, quando morriam, eram «simplesmente descartados e depois cobertos por lixo», explica Maria Teresa Ferreira, professora na Universidade de Coimbra que participou nas escavações preventivas. Segundo a investigadora, há corpos que revelam algum cuidado na deposição, reproduzindo posições mortuárias tipicamente africanas e até uma mulher com um bebé de cerca de 40 semanas nos braços.
Mas há esqueletos que indiciam terem sido abandonados ainda amarrados. Isabel de Castro Henriques, historiadora e representante em Portugal da UNESCO no projeto Rota dos Escravos, que em 1993 foi minha Professora, na FLUL, chegou a assinar um protocolo com a Câmara de Lagos para a criação, na cidade, de um Museu da Escravatura e um memorial no local onde as ossadas foram encontradas. Porém, a autarquia concessionou o terreno para a construção de um campo de minigolfe. O contrato termina no ano que vem.
Quero acreditar que se vai corrigir este erro. Que ali seja erguido um memorial, um museu ou um centro de estudos sobre a escravatura. Pela memória do que somos feitos. De gente. Pela humanidade.