Memórias à mesa

Já partilhei algumas recordações dos pratos que marcaram a minha infância, mas desta vez decidi revisitar a “ementa” daqueles tempos. Era uma lista não escrita, criada na hora, com o que havia em casa. Era simples, feita de ingredientes humildes e temperada com a criatividade de cada um.

Não havia luxo, mas havia magia: o pouco se tornava muito, o básico transformava-se em algo que saciava o corpo e aquecia a alma.

O milho cozido era um clássico. Era daqueles pratos que entravam na ementa regular. Uma vez por semana era dia de milho. Era muito apreciado. Ingredientes todos locais, onde o tempero era à base de torresmos guardados do porco morto em dezembro e que serviam para o ano inteiro.

Quem podia, acompanhava com chicharros fritos, cavalas com molho de vilão, gaiado seco preparado com cebola, azeite e vinagre, bifes de atum ou até mesmo com bacalhau assado na brasa.

O peixe fresco era raro, mas por vezes existia. Isso acontecia quando passava lá na terra um vendedor ambulante vindo dos lados de Machico, num carro de caixa aberta, carregado de atum, cavalas e chicharros.

Em muitos casos não havia peixe, mas improvisa-se sempre um conduto. Uma simples cebola picada, com salsa e regada com vinagre caseiro e azeite, servia para acompanhar deliciosa iguaria.

Os mais pequenos deliciavam-se com milho quente com leite ou açúcar por cima. Quando sobrava, era frito numa frigideira, acompanhado com um ovo frito ou mais singelo ainda, servido frio, uma talhada de milho com uma chávena de café frio.

Entre essas memórias está a açorda de milho cozido cortado em pequenos quadrados. Não era uma receita sofisticada, mas com uma simplicidade que a tornava única. Preparada com água, alho, azeite, segurelha e uma pimentinha para dar aquele toque especial, os ovos deitados um a um, misturavam-se com a segurelha, criando uma textura rica e envolvente.

Outras receitas singelas também brilhavam no dia-a-dia. Os bolos da frigideira, feitos apenas com farinha, ovos e água, eram uma solução prática e económica, servindo tanto como lanche como refeição ao final do dia. Já as papas de farinha feitas com água ou leite e um toque de casca de limão, ganhavam vida quando eram cozidas e polvilhadas com açúcar.

São pratos que desapareceram das mesas, mas que continuam a habitar as recordações de quem os conheceu.

Até o pão duro tinha um fim nobre: molhado em ovo batido e frito até dourar, era servido com café quente. As douradas – assim se designavam – eram uma delícia.

Nos dias mais especiais, a panela enchia-se de guisado de galinha um caldo de carne de porco, orelhas e rabos de porco, servido com semilhas, ou da robusta sopa de couve, com abóbora, feijão, com carne de porco salgado.

O frango ou a galinha caseira guisada, com semilhas e pimpinelas tenras, apurava num só tacho de aromas. Era um prato que perfumava a casa inteira.

E quando o tempo oferecia favas frescas, estas eram temperadas com azeite, vinagre e salsa, trazendo alegria a qualquer refeição.

Mas talvez nada fosse tão memorável quanto o pão caseiro. Era tudo feito à mão e com fermento caseiro. O resultado era uma crosta dourada e estaladiça que escondia um interior macio e irresistível. Ainda quente, era devorado com manteiga ou regado com azeite.

Um tempo em que os sabores simples eram tesouros e as mesas, ainda que modestas, transbordavam carinho. Entre tachos e panelas, aprendi que a verdadeira riqueza não está na fartura, mas no amor que colocamos em tudo o que fazemos.

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