Quem não acolhe o outro nem português sabe ser

Começo a escrever num fim de semana de tanto calor que parece que vamos derreter. Por outras razões, pensámos também que poderíamos derreter quando soubemos que Israel havia começado a guerra «preventiva» contra o Irão, em 13 de junho, devido ao seu programa nuclear e dias depois, em 22 de junho, quando acordámos com a notícia de que os EUA tinham bombardeado o Irão. Com tudo isto, ficámos em suspenso para ver se era desta que o conflito assumia proporções que poderiam ser irreversíveis. Dias depois, o presidente estado-unidense, tão empenhado que está em governar por decreto, decretou a paz, mesmo sem o conhecimento das outras duas partes beligerantes. Bombardeá-los para os ajudar: onde é que eu já tinha ouvido isto?

O que teria pensado o cultivador de açafrão em segmentos vermelhos de Isfahan, antiga capital histórica, que certamente não escolheu o local do complexo nuclear, e que agora não sabe se ainda terá as 150 000 flores necessárias para produzir um quilo da preciosa especiaria? E o que passou pela cabeça dos pilotos dos bombardeiros furtivos que descolaram do Missouri durante as 17 horas que demoraram a penetrar no espaço aéreo iraniano?

Noutras paragens, o governo português achou por bem celebrar o quinquagésimo aniversário de algumas das independências africanas, como Moçambique e Cabo Verde, propondo a alteração da Lei da Nacionalidade, tornando mais difícil a aquisição da mesma (o requisito de residência de 5 para 7 anos para os nacionais da CPLP, ou de 5 para 10 anos para todos os outros), e da Lei dos Estrangeiros, restringindo vários dos direitos aí previstos, tais como a entrada dos cidadãos da CPLP, reagrupamento familiar e vistos de procura de trabalho.

Tenho sido aqui e ali relembrado do prémio da World Press Photo ganho pela fotógrafa portuguesa Maria Abranches pelo seu trabalho visual sobre uma trabalhadora doméstica angolana de nome Maria, traficada para Portugal aos 9 anos de idade com o engodo da educação, e que simboliza várias outras mulheres que de nós se ocupam. Nacionalidade mais exigente?

Lembro também o trabalho da fotógrafa madeirense Clara Pereira que estudou no International Centre of Photography, em Nova Iorque, onde reside, e que fotografou alguns dos cerca de 900 ucranianos que foram para a Madeira por causa da guerra.

O contexto é outro pois trata-se aqui de uma obrigação legal do Estado Português em proteger quem é perseguido e que apresenta um pedido de asilo. Só nos honra, contudo, este alargar da hospitalidade que não devia ter outro eco nos pedidos de nacionalidade. Infelizmente, os ventos nacionalistas, e populistas, parecem soprar noutras direções.

Contudo, fomos relembrados pelos discursos de Lídia Jorge e do próprio presidente da República, por ocasião das celebrações do 10 de junho, unindo-se na luta contra o extremismo, o racismo e a xenofobia, que «[p]or aqui ninguém tem sangue puro» e que «não há quem possa dizer que é mais puro e mais português que qualquer outro». Além disso, quem não acolhe o outro nem português sabe ser.

Por último, registo a bonita homenagem prestada ao padre Martins Júnior, a quem muito devemos, por ocasião do seu funeral, no mesmo dia em que as bombas americanas tocavam solo e subsolo iranianos, o acordo de paz entre a República Democrática do Congo e o Ruanda, apesar do contexto de insaciedade relativamente aos recursos naturais por parte dos EUA, bem como a assinatura da criação do Tribunal especial para o crime de agressão contra a Ucrânia sob a égide do Conselho da Europa.

Em tempos incertos, é ainda mais importante estar atento a sinais de esperança. E por aí vamos, com paragem na Hungria, como os cerca de 200 000 participantes na Marcha do Orgulho que havia sido proibida pelo respetivo Governo. Há quem tardiamente, ou nunca, perceba que não se pode travar o reconhecimento do outro para sempre.

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