Os meus escritos não valem nada. Eu faço parte de uma geração de não-escritores que deambula por aí de caneta em punho a tomar notas no vazio do mundo, mas não sei ao certo qual é a minha geração. Talvez seja a última, ou a penúltima, ou a antepenúltima. Sei lá. O que posso dizer é que tenho agora 57 anos e também posso dizer que os não-escritores são uns tipos esquisitos (expressão eufemística que abarca todo o género de perdedores da vida, independentemente do percurso e condição socioeconómica, pois a frustração, como todos sabem, tanto atinge pobres como ricos), uns tipos esquisitos, dizia eu, oriundos da variante humana que escreve com o propósito de ocupar o tempo e matar a ansiedade da existência e de tanto escrever volta e meia aparecem com uns escritos bestiais, coisas que nem ao Diabo lembra, do mesmo modo que um tipo que vai ao ginásio três dias por semana acaba por ficar todo musculado ao cabo de um ou dois anos.
Às vezes, os não-escritores brotam inesperadamente do abismo onde vivem brandindo os seus manuscritos e ganham grandes prémios literários ou publicam livros espetaculares com chancela de editoras obscuras e surpreendem a mui presumida tribo da literatura com a sua mestria iniciática, tal como acontece com as provas cegas de vinhos, em que os enólogos de alta envergadura apostam como burros num vinho de uma região que nem sequer sabiam ser produtora de uvas e depois, embora o vinho seja mesmo bom, ficam pasmados, pensando que algo vai mal no reino vitivinícola, que em grande parte é uma grande aldrabice, como de resto o reino literário também.
Adiante…
Estava eu a dizer que faço parte de uma qualquer geração de não-escritores, mas estou lá atrás, no fim da fila. Atrevo-me a confessar que sou como um vinho áspero, realmente péssimo, pelo que nunca hei de ganhar prémios nem publicar livros, por mais cega e idiota que seja a prova na qual participe ou mais obscura e independente seja a editora a que recorra. É só bochechar, cuspir e dizer que não presta. Não presta mesmo.
Ainda assim, não posso negar que a palavra-escrita é luz em mim. Já o disse tantas vezes, se calhar mil vezes, ou dez mil, ou cem mil. Raios me partam! Vou repetir: A palavra-escrita é luz.
Esta noite, por exemplo, sonhei que me era ordenado que tratasse as palavras como se elas estivessem num campo de concentração ou num hospital psiquiátrico. Calculo que era Deus que falava comigo e Deus pedia-me que forçasse as palavras a viver num lugar onde os lugares são proibidos e a história de cada dia apresenta a força constante da queda de uma folha do alto de uma árvore frondosa. Depois, acordei e senti logo o enorme pretensiosismo que me assiste, tão grande como uma segunda pele, a pele da minha alma. Sou demasiado pretensioso, porque escrevo sem medo que as palavras morram à fome ou que enlouqueçam na solidão, escrevo como se as palavras fossem estrelas no céu dos meus sonhos e abandono-as para sempre na noite anterior.
Sim, de facto já o disse mais de mil vezes – a palavra-escrita é luz –, mas torno a repetir, porque ela também é escura e cheia de sombras, é um fantasma especado no limiar da porta, é uma febre alta, uma morte permanente, um sussurro que esmaga e desfigura os segredos do ser humano contra a eternidade que o aguarda no fim da vida. De certa forma, em última análise, a palavra-escrita é o corpo de quem a escreve, ou seja, é o meu corpo, sim, é o meu corpo inconfundível na multidão, mas impossível de distinguir e de isolar no movimento perpétuo dos homens.
Seja como for, eu sou um não-escritor e os meus escritos não valem nada.
(…)
Quando a Pat leu este texto – ela lê sempre as minhas crónicas antes da publicação e algumas não saíram por causa da sua crítica –, ficou irritada e disse-me:
– Estás a armar-te em coitadinho. O que tu queres é que as pessoas digam que escreves bem.
E depois, ainda mais irritada, desabafou:
– Detesto isso!