Lá no sítio

Há muitos anos, numa campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa, participei em algumas ações do então candidato, Santana Lopes, da coligação liderada pelo PSD. Lembro-me bem de uma apresentação em que ele falava, convicto, da importância de recuperar a vida social de bairro. Dizia que as pessoas deviam poder viver o seu dia a dia à porta de casa: levar os filhos à escola, ir às compras, à piscina, ao campo de futebol… tudo ali, sem precisar de grandes deslocações. Uma cidade grande, sim, mas com um coração de aldeia. Aliás, como acontecia, AAL, antes do AL, nos velhos bairros que tornaram famosa a Lisboa do fado com velhas tendinhas.

Ideal bonito. Foi concretizado?

Na pressa da modernidade, da mobilidade, do progresso… perdemo-nos?

Na Madeira além dos bairros sociais, não se falava de bairros, mas de sítios, sem número de porta, o que obrigava a carteiro quase de sítio. No meu caso, o sítio era vivido pelo Largo do Miranda, a venda do sr. Marques, a capela da Choupana, o cabeleireiro da Sr.ª Virgínia, entre outros locais. A vida acontecia ali. O mundo cabia em poucas ruas e veredas, em trilhos batidos, num campo de terra onde jogávamos à bola até anoitecer. Tudo o que era “a cidade” exigia um certo ritual, uma preparação. Ir à cidade era um acontecimento, não uma necessidade diária.

Hoje, tudo parece ao contrário. Há escolas, piscinas e polidesportivos até onde antes só havia mato ou pedra. Mas perdeu-se alguma coisa pelo caminho. O comércio de rua foi sendo engolido por centros comerciais algo impessoalizados, os cafés de esquina, onde se trocavam confidências, tais quais os balcões das casas antigas madeirenses, donde se conversava do tempo, e alguma bilhardicezinha, sem maldade, claro! desapareceram. Alguns ainda subsistem como centros de convívio, mas muitos foram fechados, também vergados pelo peso da renda, e o carro tornou-se rei das ruas e do stress.

Lembro-me de o padeiro descer a ladeira, o pão a cair no saco de pano à porta. Era um pão com o formato do papo-seco, mas gigante, mas mais consistente e com mais massa. Havia ainda o leiteiro também com as suas latas, e o pesquito a apregoar o peixe – Oh ‘charros, cavalas, espadas!”… Ainda ecoam nos meus ouvidos! Mas o som de que ninguém se esquece é das “Galinhas Amarelas”, já ouvia quando ainda estava na Travessa do Pomar. Havia ainda o carro com as hortaliças que vinham na carrinha de caixa aberta e com uma balança, não sei como se equilibrava numa ladeira tão íngreme como o Caminho do Meio.

E pensar que agora nos dizem que o futuro são as entregas ao domicílio, a Uber, os marketplaces, as apps… Mas, no fundo, estamos só a reinventar o que já existiu. Os nossos avós tinham tudo isso. Só que com nomes diferentes e rostos que se conheciam. Ainda se falava português nesse tempo!

A vida era à porta de casa. E talvez seja tempo de a trazer de volta. Felizmente, há sinais de esperança. Algumas empresas, cansadas do trânsito, começaram a instalar-se fora dos centros. Pequenas mercearias, cafés e minimercados voltaram a abrir. E as pessoas começaram a redescobrir o que é viver com tempo – tempo para estar, para ver, para cumprimentar o vizinho.

Porque a verdade é esta: não precisamos de mais carros. Precisamos de mais vida.

Um sítio – seja na Madeira ou em qualquer lado – não é apenas um conjunto de ruas. É feito de histórias, de afetos, de pertença. O lugar onde se cresce, se ri, se sofre, se vive. Recuperar essa memória é urgente. Com eventos locais, associações, arquitetura que convida ao encontro, casas do povo, juntas de freguesia atentas.

Até a tecnologia pode ajudar nesse retorno do tempo antigo: com apps que promovam o consumo local, plataformas de partilha entre vizinhos, espaços de teletrabalho comunitários.

Deslocarmo-nos continua a ser importante. Explorar, conhecer, viajar… sim. Mas ficar horas no trânsito, enfiados no carro, engolidos pelo ruído e pelo cansaço, não é liberdade. É uma usurpação de tempo social e cultural, das manhãs com os filhos, as conversas no café da esquina, um simples pôr-do-sol no miradouro.

A vida de sítio não era uma coisa velha, nem apenas uma memória bonita. É um projeto para o futuro. Um futuro mais calmo, mais próximo, mais nosso, mais solidário.

E, talvez, ao reconstruirmos esse modelo, redescubramos uma verdade antiga: a melhor cidade não é a mais veloz e nos leva o tempo, mas a que nos devolve tempo para a viver.

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