Tinha eu uns 14 ou 15 anos. Não mais do que isso. E, à sexta-feira, depois de feitos os trabalhos de casa, tinha autorização para fazer o que quisesse. Bem, o que quisesse ponto e vírgula. Havia sempre aquele lema: “a liberdade usa-se enquanto se souber usar” que me deixava em sentido. E, verdade seja dita, nunca senti a necessidade de experimentar a privação dessa condição de ser livre. Vivia, portanto, à vontade, mas não à vontadinha. Acompanhava-me sempre o sentido de responsabilidade. A vontade de reconhecer as condições que me eram dadas e, com isso, de querer retribuir com alegrias, sabem? Sabem pois.
Mas, como vos escrevia, à sexta à noite, e beneficiando dos horários tardios a que o meu pai chegava a casa por estar a trabalhar, lá ia eu até ao “muro”. Sim, naquela altura não tínhamos tablets. Quando muito tínhamos computadores. Comunicávamos pelo mIRC. Telemóveis? Um ou outro podia ter, mas a maioria não. Assim sendo, se quiséssemos “estar juntos”, a solução era mesmo nos reunirmos em plena Rua Nova Pedro José de Ornelas. Por baixo de um poste de iluminação pública. No tal “muro”. Havia vezes que éramos só 3. Outras 4 ou 5. Algumas uns 10 ou mais.
Não fazíamos mal a ninguém. Gozávamos uns dos outros. Eu porque era gordo. Outro porque tinha os dentes que pareciam ter sofrido um sismo de 7.3 na escala de Richter sem direito a busca e salvamento. Um porque as orelhas, já parecendo asas, teimavam em crescer para fora. Um outro que tinha uma monocelha penteada de ponta a ponta. Outro ainda que falava “sopinha de massa”. Eu sei lá. Só sei que não havia um que se pudesse gabar. E a piada é que vivíamos bem com isso. Incrível, não é? Quem diria que o mundo já foi assim?
Porém, eu sabia que a minha mãe não ficava muito confortável com a minha ausência. Preferia que estivesse em casa. Que levasse para lá os meus amigos. Na verdade, o que ela queria era que quando o meu pai chegasse a casa eu já lá estivesse. E eu agora entendo isso. Aliás, depois de ser pai eu passei a entender muita coisa que, na altura, não (me) fazia muito sentido. Essa é só uma delas…
Só que, num dia em que a brincadeira estava tão boa e a vontade de voltar para casa não abundava, eu fui ficando. Fui ficando. E ficando. Até que o meu pai passou! Mirou-nos a todos. Cumprimentou-nos e seguiu. Não me mandou embora. Não barafustou. Nada. Mas eu, não querendo testar a sua paciência, pus-me a caminho. Devemos ter chegado mais ou menos ao mesmo tempo.
“Quem era aquele de cabelo cor de rosa?”. Não sei se pensou, antecipando novas tendências, que o rapaz estivesse a passar por um processo de mudança de género ou se apenas não tinha gostado do tom. “É o Desidério, pai”, disse-lhe eu. “Desiquê?!”, pergunta ele, quase a engasgar-se com o arroz, como lhe acontece muito quando come depressa e fala ao mesmo tempo. “O Dizzy, pai”, elucidei-o, sabendo que tal dica não adiantaria nada. “Que cabelo é aquele?”, sem me deixar responder, finalizou: “Não gosto. Tem mau aspecto”. Percebi que o medo dele era que o rapaz fosse má companhia, mas não era. Não era mesmo. Não era ele e não era nenhum outro. E ainda que fossem, a decisão de os “seguir”, ou não, era sempre minha. Ainda assim não deixou de me “convidar a rever” as minhas amizades com um: “vê lá com quem andas”.
E eu, por estes dias, tenho pensado tanto nisso. Não, não me refiro ao cabelo do Zé! Longe disso. Refiro-me sim às horas a que o meu pai teima em continuar a chegar a casa, mas sobretudo ao critério que devemos ter na escolha de quem nos rodeia. E de como é que, na condição de filho, lhe digo que temo que ande, no auge dos seus 71, mal acompanhado? Não sei. Não sei. Não sei. Se vocês souberem, digam-me… Ou digam-lhe mesmo a ele! Ficar-vos-ei eternamente agradecido. Eu, o Desidério e o resto da malta do “muro”. Sim, é que, por pior aspecto que tivéssemos, não tínhamos, nem de perto nem de longe, o currículo que estes têm!! E ele é tão bom miúdo…
Pedro Nunes escreve ao domingo, todas as semanas.