Uma audácia singular

Existirão muitos que de forma mais detalhada poderão partilhar os seus momentos e episódios vividos com o Padre Martins Júnior: aqueles que estiveram ao seu lado nos tempos mais conturbados após a Revolução dos Cravos; os que partilharam as suas lutas políticas nos diferentes palcos políticos que pisou e, claro, os que o acompanharam de perto no seu espírito de missão cristã junto da população não só da Ribeira Seca mas de toda a região.

Mas, pelo profundo respeito que tenho pela pessoa do Padre Martins, não podia deixar de prestar o meu tributo ao homem que de forma tão repentina nos deixou esta semana. “Pensar dá mais trabalho que rezar”, dizia (sendo ele um exemplo de ambas as capacidades).

Apesar de ter sido deputada por um partido que em tempos o perseguiu e espezinhou publicamente, o Padre Martins Júnior nunca me tratou com reticências. Com a alegria na voz, concedeu-me recentemente uma entrevista, integrada num projeto literário em curso. Durante duas horas, numa sala de aulas da Escola da Ribeira Seca, escutei o seu depoimento sobre o percurso desde filho de pescador, a padre no Porto Santo, a experiência da Guerra Colonial em Moçambique, até chegar à Ribeira Seca e lá receber a Revolução dos Cravos e fazer dela Terra de Abril (de vincar, na nossa ilha, o espírito fraterno e democrata do 25 de abril, que ali existiu). Falou ainda da revolução que falta fazer na nossa Madeira e na sua Igreja, palavras para ecoar no futuro.

Na verdade, de um homem que até iniciou um doutoramento aos 84 anos, esperamos que viva para sempre. Uma energia e felicidade de viver contagiante. Lamento não ter podido mostrar-lhe a obra final do projeto, sabendo que estará sempre atento ao que se passa nesta ilha no meio do Atlântico.

A Madeira precisava de um batalhão de Padres Martins, de vozes com coragem para pôr em causa as regras e as amarras que outros nos colocam. Perguntei-lhe como é que um homem que nasce em 1938 ganha coragem para fazer frente a toda uma estrutura eclesiástica, e com ela a política e policial. A resposta, humilde e cristã, deixo para leituras futuras. Mas talvez a verdadeira pergunta é para nós todos: como é que nós – nascidos no “conforto” pós-revolucionário e vivendo integrados na democracia liberal europeia, com os crescentes graus de conhecimento auferidos e as melhorias nas condições de vida – como é que nós demonstramos apenas fragmentos da audácia da liberdade?

Ao longo das minhas “pequenas batalhas”, desde a juventude partidária, tentei trazer mais democracia para dentro de um partido, que de papel se diz social-democrata. Infelizmente, tenho visto que o receio em “pensar diferente” não está a reduzir. Bem pelo contrário. A virulência patológica das redes sociais só exacerba o pensamento único. E isso coloca em causa a própria capacidade da região se preparar adequadamente para os desafios de hoje e de amanhã.

No ano passado celebramos os 50 anos da Revolução que trouxe a democracia ao nosso país. No próximo ano celebramos os 50 anos das primeiras eleições regionais. Que a memória de Padre Martins Júnior sirva de inspiração para que a mensagem da democracia liberal chegue efetivamente a todos, cumprindo-se, finalmente, Abril nos corações.

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