No dia em que o senhor Kayros foi conduzido ao Palácio Presidencial para uma reunião forçada com o presidente, o eremita São Mulevala dos Olhos Azuis, que vivia numa gruta a dez mil quilómetros distância, noutro continente, sonhou que era filho de um fotógrafo famoso, mas não um fotógrafo de agora, não um fotógrafo contemporâneo, desses que já fotografaram tudo e mais alguma coisa e fizeram-no de todas as formas possíveis e impossíveis que já ninguém entende as fotografias, não um fotógrafo desses, que expõem nas galerias europeias e norte-americanas e às vezes também nas galerias do terceiro mundo e aparecem volta e meia na televisão a falar misteriosamente de arte e vida, dando a impressão que conhecem uns quantos segredos do mundo e da existência, apesar de andarem perdidos no mundo e na existência, não um fotógrafo desses, antes um fotógrafo do século XIX, ou talvez do princípio do século XX, sim, seria um fotógrafo do princípio do século XX, daqueles que usavam câmaras de fole assentes em tripés de madeira e que costumavam ir aos domingos e feriados para os parques e jardins tirar retratos às pessoas, que no fundo é onde reside o grande segredo do mundo e da existência, e esse fotógrafo famoso, o pai de São Mulevala, tinha um belo estúdio no centro da cidade onde viviam, que era uma cidadezinha à beira mar chamada São Barnabé do Calhau, cheia de árvores e de canteiros floridos nas ruas, capital da República Insular de São Barnabé.
São Mulevala ajudava o pai na arte de fotografar, mas detestava aquilo. Aborrecia-se de morte e a preto e branco, digamos assim, e adormecia no estúdio e danificava os equipamentos por distração e descuido.
Naquele dia, quando sonhou que era filho deste fotógrafo, estava sozinho em casa. Toda a família tinha saído em viagem, embora no sonho toda a família fosse apenas o pai. A casa ficava no primeiro andar, por cima do estúdio, e dava para a Rua da Carreira de Cavalos, bem no centro da cidade. São Mulevala estava estendido na cama há muito tempo. Olhava para o teto, que era um teto estilo arte deco, quer dizer, tinha lá uns desenhos que pareciam arte deco, e pensava, ou melhor, analisava a última viagem noturna. De súbito, apercebeu-se que o silêncio era total e absoluto. Nenhum ruído provinha de nenhum sítio, nem mesmo da rua. Àquela hora, diga-se, era suposto a rua estar agitadíssima. São Mulevala pensava que era manhã cedo, mas o sonho dizia-lhe que não, que era tarde, cinco horas da tarde, talvez seis. Fosse que hora fosse, o certo é que a rua devia estar repleta de ruídos, mas não estava.
São Mulevala ergueu-se, perplexo. Escutou. Nada. Absolutamente nada. Algo se passa, pensou e foi até à janela e viu que a rua estava, de facto, deserta. Todas as lojas estavam fechadas. Todas as portas e janelas de todas as casas estavam também fechadas, de modo que concluiu que o povo acorrera em massa a algum sítio, um sítio qualquer onde estaria certamente a fazer-se História.
Meu Deus, está a fazer-se História! – Pensou. Tenho de ir fotografar o acontecimento. O pai não me perdoará se não o fizer.
Quando o sonho de São Mulevala dos Olhos Azuis se encontrava neste ponto, precisamente neste ponto, o senhor Kayros, que se achava na realidade, que é como quem diz acordado (embora as pessoas também estejam na realidade quanto estão a dormir ou a sonhar), viu-se forçado a concluir, como muita gente antes dele já o fizera, que o presidente da República de São Barnabé tinha enlouquecido, que se transformara num doido varrido, num verdadeiro louco de manicómio.
O presidente está gravemente doente da cabeça, pensou o senhor Kayros. Tem os fusíveis completamente queimados, pensou ainda. E logo tratou de esconder os pensamentos no mais fundo e íntimo de si, mas mesmo assim ficou apavorado, temendo que de lá escapasse um eco inoportuno e fosse cair no ouvido do presidente.
O problema era gravíssimo, espinhoso e sombrio e urgia encontrar uma solução. Porém, o desnorte do senhor Kayros era de tal ordem que, mesmo estando acordado e de olhos bem abertos, quase arregalados, não parava de cair no abismo sem fim do medo. De súbito, o sociólogo Zaqueus M. Ribeiro, seu grande amigo, apareceu do nada, tocou-lhe no ombro e disse-lhe:
– Foge de São Barnabé.
– É isso! Ótima ideia! – Gritou o senhor Kayros e o seu grito fez acordar o eremita São Mulevala dos Olhos Azuis a dez mil quilómetros de distância…