Incompleta seja a fome

Calma. O teu corpo ainda entra no mar e não teme o frio nem o corte profundo da primeira vaga. As tuas mãos respiram dentro do escuro como a planta infinita que percorre o interior da terra. O teu corpo não há-de ser rápido senão no fim, quando a última ilha atingir a luz dos teus olhos abruptos, como um animal primeiro impossível de domesticar. Tens o medo sobre o corpo, ainda que a sombra se derrame de outras claridades anuladas pela única noite, como se não soubesses a disciplina do tempo, a sua terrível mão mergulhada na cabeça que não acorda, ou no vento principal da floresta deserta.

Calma, é preciso o ardor. As tuas mãos sangram ainda e tingem, um a um, os fios inteiríssimos da memória da infância. Eis aqui o teu corpo todo calculado pelo mar; a sua devolução à terra depois da tempestade. Quando a calma abrandar, nada será como antes e tudo será nada ainda, porque vens de lugares infundados onde os homens não estão, como se o fim estivesse no princípio e um corpo fosse só a imaginação primitiva de um deus arrependido que, um dia, sonhou ser homem; nada mais depois dele senão o tremor de uma segunda pele. Talvez Deus tenha aberto os braços para nos deixar cair do céu, numa descida interminável para antes do grande final. Terá sido há tanto tempo ou ainda hoje. Nada sabemos sobre o tempo que conta, sobre o que é impossível medir, sobre o que arde e morre até tarde.

O teu corpo é esse milagre numa fração de segundo, aparição e desaparecimento, uma quase perniciosa inexistência; como uma ilha que tudo devasta por meio da beleza. Estilhaços de uma carne prematura que escapou à criação de Deus. E então exaspera-se da feição de uma boca, de um brilho que foi outrora apagado para sempre, enquanto todas as sombras podiam esconder as árvores.

Calma. O teu corpo é a contraluz de uma ordem que não há-de vir; porque a desolação nos submete a submersos territórios que só as mãos pressentem, no assombro ou na melancolia. Há que desalmar o corpo para senti-lo; onde estiveres adivinhar-se-á o mar, essa aflição belíssima entendível apenas na profundidade, nos momentos em que temes que Deus não te deixe cair – imagina-lhe as líquidas mãos sobre os vivos e os mortos, um sopro salino crescendo-lhe no coração de homem.

Que toda a fome se incomplete para sempre dessa queda não-fulminante. O tempo que vier não há-de ter mãos.

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