A vida muda e muda-nos muito. Mas há coisas que se repetem e que trazem, do fundo do tempo, uma memória que encontrámos afinal intacta. O início do verão é uma dessas velharias que resiste à mudança. O mês de junho, o mês do capacete, como se o céu enfiasse o barrete de um inverno quente, um barrete de orelhas fora de época, a desafiar os dias já demasiado cálidos para o agasalho.
Por muitas mudanças em nós e alterações climáticas no mundo, este mês apresenta-se com uma lealdade imbatível à sua natureza sombria. Está tudo esbatido naquela cor cinzenta que, apesar de ser uma cor fria, traz aquele ar abafado de um verão amordaçado. E ficámos também com um peso em nós, como se o céu nos empurrasse de encontro à terra. A cabeça parece mais lenta, mais pesada, menos disposta a pensar e o corpo menos disposto a obedecer.
Desde que me lembro de ser gente, este tempo é o tempo do capacete. Era também o tempo do fim da escola e das férias grandes, esse país da infância que parecia durar séculos e que começava a adivinhar-se precisamente neste mês. Já contávamos pelos dedos os dias para as férias que nos pareciam intermináveis, que começavam invariavelmente pelo entusiasmo, mas que desaguavam, previsivelmente, num tédio que já não conseguíamos disfarçar.
Eram outros tempos, nem todos os dias eram de praia, a liberdade era racionada. A imaginação, ainda assim, era o espaço de maior liberdade, mas depois ia escasseando e já não sabíamos muito bem o que inventar para iludir aquele tempo que não passava, aqueles dias de sol até tarde, aquelas tardes infinitas.
No quintal, perseguíamos as lagartixas, que talvez também se fartassem da nossa presença. Acho que o mesmo acontecia aos cães e aos gatos, que perdiam, naqueles três longos meses, a oportunidade para dormirem à sombra e ao sol, alternadamente.
É que, fartos de nada, inventávamos tropelias que não poupavam ninguém e até a mãe, na altura em que as mães estavam em casa e não existiam ATL’s, já sonhava com os dias de escola e com o silêncio.
Para dizer a verdade, até nós já sonhávamos com o regresso à escola. Aquele outubro que ninguém dizia ser do capacete, mas por vezes imitava junho com muito eficácia. Eram assim as férias grandes, um período de interregno entre um mês declaradamente do capacete e outro mês que o imitava.
Era um mês quente, mas que diziam ser já de outono. Era um mês de chuva e era difícil acertar na roupa e o resultado era aquele incómodo de já não ser verão, mas também não ser inverno porque nos calhou vivermos perto da costa de África. Os invernos com neve eram coisa que se via na televisão. A nós, calhou-nos o capacete e uma temperatura morna. E muitos dias de capacete dentro e fora do mês de junho.