Tempo de tosquias

Com a chegada do tempo mais quente, aproxima-se também a época das tosquias – um momento tradicional, profundamente enraizado na cultura rural madeirense. Este é um tempo de trabalho e de convívio comunitário, que o Instituto das Florestas e Conservação da Natureza, IP-RAM (IFCN) tem vindo a apoiar de forma ativa, reconhecendo o valor patrimonial e simbólico desta prática.

Importa, no entanto, desfazer equívocos que, por desinformação ou má-fé, continuam a circular no espaço público: não está proibida a presença de gado nas serras da Madeira. O que foi feito – e bem – foi o ordenamento da sua presença e restrição a áreas adequadas. É possível apascentar gado em espaços florestais, desde que cumpridos os requisitos legais, sendo o IFCN uma das entidades competentes para emitir as respetivas autorizações. Atualmente, estão emitidas cerca de 211 autorizações a particulares, o que corresponde a aproximadamente 2.100 animais, e funcionam na Região nove associações de criadores de gado, que recebem apoios do Governo Regional e asseguram a prática do pastoreio ordenado. Este modelo, baseado na responsabilidade e na cooperação, tem permitido conciliar a atividade silvopastoril com a proteção dos ecossistemas, garantindo que há vigilância, cuidados sanitários e respeito pelo bem-estar animal.

Durante séculos, por razões de sobrevivência, o povo madeirense lançou mão dos recursos disponíveis. Criar gado nas serras – frequentemente sem vigilância direta – era prática comum. Os animais eram deixados à sua sorte, muitas vezes durante meses, e recolhidos apenas para aproveitamento da carne ou da lã.

Era uma forma de vida dura, não só para quem a exercia, mas também para os próprios animais, sujeitos ao frio, calor, doenças, fome e acidentes, sem cuidados adequados.

Por mais compreensíveis que estas práticas fossem à época, foram ainda responsáveis por impactos significativos na vegetação, aumentando a erosão dos solos e o risco de aluviões, estando os animais expostos a elementos meteorológicos adversos que por vezes levavam à sua morte.

Com a melhoria das condições de vida da população este modelo foi sendo progressivamente ultrapassado. No final do século XX e início do século XXI, o Governo Regional levou a cabo um processo profundo de ordenamento do pastoreio, compensando os criadores e removendo do espaço florestal milhares de cabeças de gado que pastava em regime semi-selvagem.

A floresta pôde, finalmente, começar a recuperar. Não podemos esquecer que a vegetação típica da Madeira evoluiu durante milhões de anos sem a presença de grandes herbívoros, pelo que é especialmente vulnerável ao pastoreio descontrolado.

Hoje, há quem defenda o regresso do gado em larga escala como solução para o controlo de combustíveis, ou de plantas invasoras. Trata-se de um debate legítimo, mas que deve assentar na ciência e na responsabilidade e não servir de arma de arremesso político. O gado pode ter um papel útil em certos locais, como nas zonas de transição entre as áreas urbanas e florestais, mas não substitui o ordenamento florestal nem resolve, por si só, os riscos associados aos incêndios.

Em décadas passadas, quando as serras estavam repletas de animais, os incêndios também ocorriam – e com frequência dramática, chegando a devastar a ilha de uma ponta à outra. A história ensina-nos que o excesso e a desregulação não são soluções.

Mais recentemente, tem-se verificado a presença de alguns animais abandonados em áreas naturais sensíveis, sem identificação visível nem vigilância. Esta realidade, que em alguns casos parece resultar de uma tentativa deliberada de testar os limites da autoridade, merece atenção.

O IFCN continuará a atuar com firmeza sempre que estejam em causa o equilíbrio ambiental ou o bem-estar dos animais. Esta prática de abandono de animais sem cuidados veterinários, sem alimentação e sem abrigo é condenável. Os animais encontrados nestas condições serão sempre que possível recolhidos e, na ausência de identificação, declarados perdidos a favor da Região, conforme previsto na legislação em vigor.

O que nos move é, acima de tudo, a vontade de garantir que a presença de gado na serra seja compatível com os valores naturais que nos definem e com o respeito que os próprios animais merecem, salvaguardando o seu bem-estar. É nesse equilíbrio entre tradição, responsabilidade e conhecimento que deve assentar o futuro da atividade silvopastoril na Madeira.

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