Gurué, 11 de maio de 2008. 20h20. Passei todo o dia agoniado. A agonia, para dizer a verdade, começou ontem à noite, no preciso momento em que estava a beber a segunda Laurentina de meio litro na discoteca Brisa. Estava ali completamente aparvalhado no meio do barulho e da alegria dos outros, a pensar em quão estranha se tornou a minha vida, tão solitária e perdida nas horas de cada dia, quando de repente me sobreveio uma espécie de vómito, seguido de um mal-estar generalizado. Ainda assim, bebi mais duas cervejas.
Hoje, ao acordar, sentia-me igual, mas decidi caminhar e caminhei durante horas ao longo da estrada nacional que vai para Nampevo. Às vezes, metia-me nas plantações de chá, andava, andava e depois regressava à estrada, onde há sempre movimento de bicicletas e muita gente a pé. Quando, por fim, voltei à Missão, doía-me imenso a lombar e tinha os pés a latejar, mas, pior do que isso, continuava profundamente mal disposto. Aquilo foi almoçar uma sopa e ir logo para o quarto dormir.
Isto não é ressaca. É outro tipo de agonia. E também é preciso ver que passei a semana a morrer de tristeza, simplesmente a morrer de tristeza… Mas todos os dias abri os olhos às seis da manhã e estava vivo e dei as aulas de Português na escola da Missão como sempre. Seja como for, a semana correu-me mal e eu estou preocupado, estou mesmo preocupado, mas não sei com quê. O melhor é dormir. Sim, vou dormir e vou sonhar com o passado feliz. Vou sonhar com ‘A Ilha dos Trinta Caixões’, uma série televisiva dos anos 80 que me entusiasmava muito. Vou sonhar também com a época em que trabalhei nas obras com o meu pai e com o meu primo Guilherme e lanchava sandes de ovo com chouriço e bebia cerveja Carlsberg em garrafas bojudas.
14 de maio de 2008. “Nós Matámos o Cão Tinhoso”. É fundamental ler este livro do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. É do melhor que já li.
31 de maio de 2008. Apareceu um tipo morto no mercado do Gurué esta manhã. Cortaram-lhe a língua e o pénis e arrancaram-lhe os olhos. Crime ligado à feitiçaria. Só pode ser.
19 de junho de 2008. Foi no dia em que estive à conversa com o senhor Morais na sala da televisão, enquanto esperávamos que os padres terminassem a missa da noite para irmos jantar, no mesmo dia em que na TVM noticiaram a morte de João Margarida Passarinho Fumo, um famoso fotógrafo de jardim em Maputo, e Portugal perdeu frente à Alemanha por 2-3 nos quartos de final do Europeu, foi nesse dia, nesse exato dia, que percebi que uma parte do meu coração ficaria em África para o resto da vida, ainda que desconhecesse por completo o tamanho desse resto.
Alta Zambézia. Julho de 2008. Este final de tarde, este vir lento da noite, está igual a tantos fins do dia da minha infância no Laranjal. O céu ainda claro, com um leve tom magenta rente à terra, o recorte silencioso das montanhas, a copa adormecida das árvores, nem um suspiro de vento, nada – a quietude total. Às vezes, os gritos e a correria das crianças chegam-me aos ouvidos vindos do bairro e são exatamente os mesmos da minha infância. E o frio suave que a noite arrasta é o mesmo que a noite arrastava lá longe – no tempo e no espaço – quando eu era menino. Nunca tinha visto nada assim no decurso da minha vida adulta, nada que me trouxesse tão vivas memórias como este lugar. Mas também sei que em parte – talvez em toda a parte – a solidão faz-me escutar mais claramente as vozes do meu passado e torna as suas imagens mais nítidas, aqui e em qualquer outro lugar.
(…)
Gurué, 28 de março de 2013. Quinta-feira Santa. Eram grandes as minhas esperanças. Eram enormes. As esperanças são sempre grandes, enormes, contudo a mochila está arrumada, o dinheiro está contado, os empréstimos estão contraídos – meia dúzia de euros a um amigo, meia dúzia a outro. A viagem está marcada e o espírito está inquieto. O espírito tanto quer ir como não ir e o coração está ferido, destroçado, o estômago amargurado, apertado. Partirei, mas não direi mal de ninguém, não direi mal de nada, porque as minhas esperanças eram do tamanho desta gente, eram do tamanho deste lugar. E assim termina o capítulo da minha aventura em África. Parto com amor por tudo, porque só com amor é possível partir em paz. Além disso, partir também é ficar para sempre.