O Domínio do Individualismo

Ao reler Luzia e o seu Cartas do Campo e da Cidade dei por mim a pensar que lemos obras escritas no passado, porque, independentemente da época em que vivemos, os homens, no fundo, não mudam muito e, mesmo mudando as circunstâncias, viviam um mundo que reconhecemos. Nem falo do amor, que é, no fundo, matéria intemporal, ou da reação à mudança, à morte, etc., e a lista é longa, mas do retrato e análise de eventos, classes, personalidades que até estão mais ligados ao momento.

Numa conjuntura diversa, após a morte de Sidónio Pais, que alimenta a luta entre monárquicos e republicanos, Luzia escreve: “E eu aposto que no fundo os políticos estão satisfeitíssimos, porque voltaram à vida que lhes agrada… Caluniar, intrigar, fazer comícios. Os jornais já andam numa bulha de senhoras vizinhas. O *** despediu-se do partido. O *** ataca os monárquicos. O *** faz insinuações e o *** conta, muito em segredo, aos íntimos, que o *** nunca foi de confiança… muito inteligente, Oh!, inteligentíssimo! Mas é bom a gente não se fiar nele. Cavalheiros apopléticos […] exclamam: – Isto não pode continuar assim! Meninos imberbes, gesticulam, berram: – Eu não admito… E há os misteriosos, os que estão em segredo, os que sabem tudo, e, em voz baixa, com olhares desconfiados, anunciam… […] Pergunta-se avidamente: – Aqueles são pelo governo ou pela junta?”

A citação é longa, porque merece ser lida com um sorriso. Um sorriso que também traz alguma tristeza à mistura, porque se qualquer um de nós consegue enfiar a carapuça a muitos *** e percebe bem a situação, também sabemos que a desconfiança perante os comportamentos partidários se alimenta deste retrato irónico, realizado a partir da mais pura e crua realidade, de que a autora faz eco. Escrito em 1915, antes da Primeira Guerra Mundial, com conflitos internos e o aumento de crises internacionais, a conjuntura era tão difícil como agora. Reinavam a descrença, as consequências desumanizadoras da revolução industrial, a ideia de que quem nos governa não se liga verdadeiramente com os governados. E os homens refugiavam-se cada vez mais num individualismo baseado numa moral, numa política que satisfizesse os próprios interesses, sem lugar para o “outro”, alimentando o etnocentrismo e o nacionalismo pátrio, traduzido na mentalidade de: um só povo, uma só etnia = a uma nação unificada.

É esse individualismo que se tem vindo a espalhar na sociedade portuguesa, à semelhança da europeia, e ainda pior, instalando-se na política, no culto de “um” salvador e numa criação acelerada de “minions”. Fernando Pessoa criticava, precisamente ainda antes da Primeira Grande Guerra, a ideia de uma liberdade individual radical, sem qualquer ligação com a coletividade, argumentando que essa liberdade era uma forma de isolamento e alienação em relação ao mundo e aos outros. Isto porque a ética não deve ser baseada na ideia da auto-suficiência da consciência individualista, mas nos papéis mútuos e na moralidade da comunidade. Esta posição influi inevitavelmente na política, na justiça social, num conceito de liberdade e de autonomia adquirida que não é individualista, mas social, comunitária.

Se, aparentemente, enveredar por discursos anti-política, desejosos de um “pai” salvador que nos proteja, e, já agora, goze também de favor divino, parece ser uma espécie de grande revolta e revolução, defendendo o “nosso”, é, segundo Pessoa, uma forma de apatia da sociedade portuguesa, fruto do individualismo que se acomoda com qualquer tipo de formas de poder, na ânsia da regra, da regularização e da organização.

Na verdade, o individualismo cria formas de autoritarismo, suportadas na ignorância e na incapacidade de os homens saírem da posição de conforto próprio, sem riscos, da formulação individualista. Mau mesmo é quando o individualismo se volta contra nós, porque há uns indivíduos que acham que a sua liberdade de decisão vale mais do que a nossa. E “aqueles são pelo governo ou pela junta?” passa a minar partidos, política, sociedade e a nossa hipótese de felicidade.

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