A estranha moda de apelar à pena alheia

A maioria dos portugueses que viram e reviram as imagens da indisposição de André Ventura na semana passada, em direto e em largas horas de repetições televisivas, perceberam o truque descarado que se seguiu a esses episódios.

Não se fala aqui da dor no peito, da tensão alta, da indisposição que se toma como assustadora e reveladora de uma fragilidade a que ninguém está imune. Ninguém.

Aqui fala-se da encenação criada nas horas seguintes. Das mensagens a partir da cama do hospital, da saída com o casaco dependurado como se tivesse o braço partido e de novas imagens a partir da cama do hotel, com camisa desbragada para se ver o penso ao peito e outro nas costas da mão que dançava em frente da câmara. Um número, já se vê.

Mas esse número, que aparentava ser uma espécie de pedido de atenção, encontra acolhimento em milhares de outros portugueses.

As redes sociais estão cheias de imagens dessa natureza em que os protagonistas se esforçam descaradamente para pedir colinho de quem os vê.

As publicações mais ligeiras são aquelas com frases feitas compradas no mercado das lamentações.

As mais elaboradas, envolvidas num certo requinte de chamadas de atenção, são aquelas em que alguém publica uma fotografia com uma pulseira do centro de triagem de uma qualquer unidade de saúde.

Deve ser pela quantidade de likes e comentários que essa condição de fragilidade desperta que muita gente – mais ou menos conhecida, mais ou menos esclarecida – embarca na onda de rogar a pena alheia.

E não estamos a falar apenas dos mais deprimidos ou dos adolescentes à espera de afirmação. Falamos mesmo de muito boa gente que cai na tentação de implorar a pena de outros em plataformas públicas. É quase como provocar o choro na paragem de autocarro ou no meio da esplanada cheia.

É uma forma de convocar o outro, seja ele quem for, no que pode ser descrito como uma moda tão estranha quanto comum.

Muitas vezes são exames de rotina, são consultas de despiste de urgências, são atos tão normais como comprar pão na padaria e carne no talho. Mas isso não dá interações. Agora as urgências…

O pináculo desta tendência, aquela que inspira mesmo muitos likes, muitas reações com carinhas tristes e de lágrima a escorrer, são as comunicações de que Fulano de Tal está de Luto. Isso é garantido que gera muitas mensagens de força e outras reações. Mesmo quando o luto é por um primo que Fulano sabia que tinha, mas com quem não falava desde a primária, antes de o primo ter sido emigrante durante 30 anos.

E se caímos na esparrela do conforto e perguntamos se está tudo bem, arriscamos ouvir isso mesmo: “Sim, está. Era um primo distante, já não falava com ele desde a primária, antes de ter sido emigrante durante 30 anos”.

Esta apetência para implorar a pena pública mostra um estado de dependência das redes ditas sociais que merece um estudo sério nos domínios da Psicologia Clínica.

É uma predisposição para o miserabilismo, uma disponibilidade para praticar a figura do coitadinho, do infeliz, do pobre. Isto num meio que parece ter sido criado justamente para a partilha de reflexões e experiências felizes entre amigos, mesmo que sejam apenas daqueles amigos com quem nunca trocámos uma palavra.

E tudo isso revela como muitos se sentem cada vez mais isolados, mesmo aqueles cujo perfil nas redes sociais revela centenas ou milhares de seguidores ou amigos.

São amizades diferentes.

Não são amigos do peito. Não são amigos de casa. Nunca foram amigos da escola. Não se cruzaram na tropa. Nem sequer são amigos coloridos que partilham benefícios.

São militantes da tristeza que procuram conforto na pena alheia. É tão estranho. E tão comum.

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