Meu Querido Diário (Fragmentos 1994-1997)

03 de junho de 1994. Tudo o que hoje é assim um dia vai mudar, alterando a ordem das coisas e, como tal, provocando uma crise, ou melhor, gerando um imenso vazio. Da minha parte, estou à espera de que as palavras entrem em mim para poder contar histórias. Elas bailam desordenadas à minha frente, mas não me dizem nada. Na verdade, nem sequer as vejo. Sei que estão aqui, mas não as vejo. Acho que estou bêbado.

11 de novembro de 1994. Um quarto para as três da manhã. Cheguei bêbado a casa. Hoje é o dia dos meus anos. Faço 27. É dia de São Martinho, dia de comer bacalhau e beber vinho. Foi o que eu fiz. Embriaguei-me. Parabéns, meu caro!

18 de novembro de 1994. Acordei às quatro e meia e não consegui dormir mais, porque fiquei a pensar que tenho um cancro na pele. Apareceu-me uma manchinha no pulso direito aqui há dias, uma coisa de nada, mas eu penso que vou morrer por causa disso. Estou atordoado. Sinto-me cansado e mal disposto, mas felizmente ainda sou capaz de pontuar o que escrevo.

05 de junho de 1995. A minha mãe morreu no passado sábado, 03 de junho. Chorei. Uma tristeza nunca antes sentida. Uma dor infinita. Minha querida mãe!

10 de junho de 1995. Primeira hora do Dia de Portugal. Missa do sétimo dia. Não foste justo, Deus. Ouve bem o que te digo: Não foste justo. Mas também ninguém espera que sejas justo. Cá para nós, já estás meio morto e em breve vamos matar-te por inteiro. Tu, certamente, vais ficar lixado e vais despejar a tua maldita ira em cima da gente. Quero lá saber. Somos iguais, eu e tu. Ambos poderosos e covardes; ambos afáveis e vingativos; ambos serenos e violentos; ambos dignos e sacanas. Não tenho medo de ti, nem que me mates agora.

11 de junho de 1995. Há coisas que se devem repetir muitas vezes para que delas se faça memória. Então, vou repetir: Não foste justo, Deus. Mas também já ninguém espera justiça de ti. Além disso, há tristezas que são o passaporte para entrar no paraíso. É ou não é?

16 de janeiro de 1996. Três e cinco da manhã. Islandesas. Eram islandesas. Eram jovens e bonitas e queriam sexo. Encontrei-as num bar na zona hoteleira e apeteceu-me devorá-las. Eram lindas. Duas nórdicas de cortar a respiração. Mas não aconteceu nada. Da minha parte, nunca acontece nada. É sempre assim, quase sempre por imperativos morais. Puta que os pariu! Por outro lado, eu mal sei falar inglês, muito menos com esta meia mamada. You are very beautiful – eu a dizer com a voz arrastada, a revirar os olhos. Puta que pariu! You are very beautiful… Não aconteceu nada, mas podia ter acontecido. Ah podia, sim senhor! As gajas eram mesmo boas, porra!

02 de abril de 1997. Fui ao Poiso com uns amigos ver o cometa Hale-Bopp. Que coisa magnífica cruza o nosso céu! Assim, no breu da serra, as estrelas são a imagem do Deus puro, o Deus em que todos acreditam, o Deus que todos amam e veneram em todos os cantos do mundo! É espantoso!

Depois, descemos à cidade e entrámos num bar, ou seja, caímos no abismo das relações entre pessoas – pessoas que se ama, pessoas que se odeia, pessoas que se deseja e despreza, pessoas que estão perto e ao mesmo tempo à distância de 196 milhões de quilómetros, como o exuberante Hale-Bopp.

24 de maio de 1997. Oiço uma voz que me chama durante os sonhos. Penso que é a voz da minha mãe. A voz vem das profundezas da minha alma e atravessa o meu sangue, o meu coração.

A minha mãe haveria de ficar contente sabendo que estou a tirar carta de condução. Finalmente, à beira de completar 30 anos, estou a tirar carta de condução! Ela falava-me sempre disso. Vinha comigo até à porta do caminho e ficávamos a conversar enquanto eu esperava pela camioneta. Dizia que haveríamos de passear pela ilha aos domingos e o pai faria uma garagem ali mesmo. Tinha muita esperança e sempre acreditou em mim, sempre teve fé em mim, mas eu não concretizei quase nenhum dos seus sonhos em vida.

03 de junho de 1997. A minha mãe morreu faz hoje dois anos. Nunca mais a luz do dia foi a mesma. Agora, vejo com toda a claridade que a luz do dia nunca mais foi a mesma e a noite passou a ser um monstro de veludo negro onde o meu sono tem medo de existir. Tenho tantas saudades de ti!

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