Ia jurar que foi ontem! A bata às riscas, a cesta de vimes do lanche, os sapatos largos à espera que os pés crescessem. Quem os comprava assim, inclinados para o futuro, sabia da celeridade do tempo; quem os usava ignorava ainda que o tempo é mais subtração do que soma. Vamos perdendo a forma, vamos perdendo os dias, vamos perdendo, demasiado rápido, a bata às riscas e os sapatos um número acima. Sapatos rápidos como o tempo, já no amanhã, já na pressa de um dia a mais.
Ia jurar que foi ontem! As borbulhas onde não deviam, no dia que não deviam, tudo fora do lugar, porque tudo ao contrário. Difícil crescer e ver-se, de repente, em dissonância com o mundo. Num ápice, tudo errado em nós, tudo como não queríamos. A sair fora do lugar e a notar-se quando queríamos esconder, quando queríamos ser de uma transparência mais consentânea com o nosso desejo de silêncio, com a nossa necessidade de colo, mas este, ao contrário dos sapatos, não estava um número acima, mas muitos números abaixo da nossa necessidade de consolo.
Ia jurar que foi ontem! Aquele primeiro beijo, aquele primeiro amor desvairado como um coração desafinado. Aquela noite da primeira volta num carrocel para crescidos. Aquela primeira perda, aquele primeiro adeus como o fim do mundo. Aquela primeira dor por dentro, como se estivéssemos partidos, dilacerados, perdidos.
Ia jurar que foi ontem! O finalmente perceber que a dor, e o mesmo acontece com a alegria, fazem-se às fatias como os bolos de aniversário, como os bolinhos da sorte do restaurante chinês, como o recheio dos chocolates sortidos, como aquela cereja mais amarga ou como o bicho dentro de ameixa que parecia sã. É uma roleta russa, uma surpresa, uma possibilidade de queda ou de voo.
Ia jurar que foi ontem! Aquela primeira morte que nos ensina que, afinal, há muitos fins do mundo, que podem ser alheios, mas que se fazem nossos porque próximos, porque nos doem na parte íntima do osso. Aprendemos a cair sem estrondo, a cair para dentro, mas também aprendemos a vir à tona uma e outra vez. O mundo está sempre a acabar, mas não definitivamente, não ainda, não agora.
Ia jurar que foi ontem! A primeira ruga surpresa, aquele primeiro cabelo branco empertigado, a sobressair onde não devia, quase como a borbulha da adolescência. Só que agora conhecemos mais alguns truques para enganar o tempo aos olhos dos outros; nunca aos nossos, os nossos já sabem há muito tempo as coisas do tempo.
Ia jurar que foi ontem e talvez tivesse sido, este susto no peito, este tempo a correr, estes sapatos que agora são o número certo, mas, ainda assim, não parecem ser. O tempo é sempre a descompasso, o nosso passo falha a falha do chão, há um desafinar que é coisa mais que própria e na dobra do qual é possível a felicidade, mas também o seu contrário. E a vida, essa, é de muitos tempos, de muitas geografias, de uma soma de nós mesmos, a avançar como um vento rápido.