Em águas de bacalhau

Vamos lá ver o que aconteceu depois do assalto que relatei na crónica da semana passada. Lembram-se do caso? Se não se lembram, paciência. A vida é assim mesmo: há coisas que ficam na memória para sempre e outras que se esquecem na hora, sendo certo que tudo o que nos desagrada contribui para nos matar e o que nos seduz raramente nos salva. Seja como for, vou contar o que se passou, a começar pelo hóspede do quarto n.º 8, o único que escapou aos bandidos.

O assalto ainda decorria e ele, um alto funcionário do governo da província da Zambézia, ligou para a esquadra local da polícia, mas ninguém atendeu. Então, telefonou ao diretor de Educação, seu superior hierárquico, que estava em casa a dormir, na capital da província, a 400 quilómetros de distância, e que ficou bastante confuso com aquele telefonema no meio da noite. Mesmo assim, estremunhado e despenteado, ligou para a esquadra do bairro onde vivia, lá na capital da província, e informou o guarda de serviço do sucedido. O guarda de serviço ligou para o comandante da esquadra, que por sua vez ligou para o comandante provincial da polícia. Este, contudo, já tinha recebido uma chamada do governador da província e o governador estava estuporado porque momentos antes lhe tinha ligado o superior provincial da congregação responsável pela Missão a dizer que havia um assalto em curso e a polícia do sítio não atendia o raio do telefone.

O superior provincial dos missionários, por sua vez, fora informado do assalto pelo padre do quarto n.º 4, aquele que tinha saído em viagem e que, encontrando-se a dormir em casa duma namorada numa cidade a 250 quilómetros de distância, acordou sobressaltado com a chamada do padre superior da Missão, que entretanto conseguira soltar-se da cadeira à qual estava amarrado e usou o telefone fixo do escritório para comunicar o assalto aos confrades.

Ao meio dia, precisamente ao meio dia, um dos bandidos foi apanhado pela polícia numa povoação nos arredores da Missão. Estava calmamente à espera do machimbombo e tinha na sua posse três computadores portáteis, entre eles o da senhora vietnamita e o do meu amigo Kayros, dois telemóveis, um deles era do Kayros, um relógio de pulso Rolex Oyster Perpetual, de 1956, também do Kayros, e uma avultada soma em notas de mil meticais. Ao ser apertado pelos agentes, disse que o cérebro da quadrilha era um tipo chamado Fernandinho, que em tempos trabalhara na Missão.

A polícia decidiu prender todos os Fernandinhos que tinham trabalhado na Missão (quatro no total), mas só descobriu o paradeiro de um. Era um velho tratorista que vivia no mato e que, ao ver chegar aquela gente toda à porta de casa, pensou que o vinham buscar para uma temporada a carregar toros e ficou feliz por isso, considerando que haveria de ganhar uns trocos. O tratorista foi detido. Mas cedo se percebeu que este Fernandinho não tinha nada a ver com o caso.

Depois, a polícia descobriu uma escada encostada no muro da Missão. A escada pertencia a um dos chefes do bairro, um velhote que sofre da coluna e se desloca com a ajuda de uma bengala. Ele tinha emprestado a escada a um vizinho para este fazer uma fossa. Concluída a escavação, o vizinho, cuja casa fica resvés com a Missão, deixou-a por distração encostada no muro e, por isso, foi utilizada pelos bandidos para se introduzirem no recinto. O velho e o vizinho foram detidos, mas logo se provou que não estavam envolvidos no assalto.

Por outro lado, a polícia percebeu que o primeiro detido estava a mentir ou então não dizia bem a verdade, pois a cada hora contava uma história diferente, mantendo, no entanto, a garantia de que o bando era profissional e de âmbito nacional, quer dizer, operava em todo o país e os seus membros não tinham medo de matar fosse quem fosse, a tiro ou à catanada, tendo já efetuado inúmeros assaltos de alta envergadura em vários pontos do país, do Rovuma ao Maputo, disse ele, lembrando, de caminho, que esta área, só para os polícias terem uma pequena ideia, era pelo menos sete vezes maior do que Portugal, a antiga potência colonial que a Frelimo esmagou.

– Estão a ver a cena? – Perguntou ele e os polícias, como é óbvio, ficaram em águas de bacalhau.

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