Um pai e um amigo nunca se apagam

No tão querido 25 de Abril, o Oscar escreveu-me a dizer que haviam espalhado as cinzas do seu melhor amigo, do seu Aita (pai, em euskera) nas montanhas bascas, donde vêm, e onde este havia falecido num acidente de montanha. O Oscar é o irmão da Amaia, e conheci-os aos dois no Kosovo. Fizemo-nos amigos, e os amigos dão-se notícias boas e menos boas. Fiquei sem saber muito bem o que dizer, mas escrevi-lhes, falando-lhes da relação com o perecimento em Madagáscar. Ficou por dizer que, nesta ilha-continente, a casa tradicional é um retângulo dividido em quatro partes, coincidindo com os quatro elementos: água, ar, terra e fogo. É uma casa muito simples, por vezes até de terra batida, e a sua parte nobre situa-se a leste e representa a água pois foi por aí que chegaram os seus antepassados. Por vezes, partem pelas montanhas.

O conhecido apresentador Antoine de Caunes dedicou um livro ao seu pai, Georges de Caunes, um dos pioneiros da televisão em França. Quando Antoine tinha 8 anos, o seu pai foi passar um ano numa ilha deserta, no arquipélago das Marquesas, enviando registos vocais que passavam na rádio. Antoine sentiu-se abandonado e vinte anos volvidos da morte do seu pai, escreveu um romance [geo]gráfico sobre essa experiência, Il Déserte (Ele Deserta), um jogo de palavras com ilha – (île) e ele (il) – e deserta (com o significado polissémico de sem ninguém e de desertar). Aprender a ser pai é também um debate de ilha-ele, que não pode desertar?

Nas Galas do Teatro Nacional de Estrasburgo (França), vi a peça de teatro Je suis venu te chercher (Eu vim procurar-te). Dois atores profissionais e uma miríade de amadores e figurantes da cidade. Uma escrita que pretende respeitar as histórias que Claire Dasne Darcueil ouviu e um eixo, o de as pessoas darem corpo, num palco nacional, à sua própria história, muitas vezes pessoas que não tinham uma grande ligação ao teatro, e pessoas que não se veem num teatro nacional; por exemplo, eu nunca tinha visto tantos véus neste teatro, e nunca em palco, e muito raramente, se alguma vez, pessoas portadoras de deficiência. Amir procura o seu pai biológico e a sua demanda leva-o ao Norte de Estrasburgo, por onde a nonagenária Liliane, e as pessoas que vai encontrando, o guiam. Liliane é a guardiã da história alsaciana, de guerras e desencontros, e sabe muito bem «o mal que faz a ideia de fronteira no mundo». A morte dos pais é talvez uma das últimas fronteiras.

Ouvi na rádio uma entrevista com o secretário-geral do partido socialista francês, Olivier Faure, filho de mãe vietnamita. Falava do seu pai, a quem dedicou um livro, Je reviens te chercher (Eu volto para te buscar) – como a música que Gilbert Bécaud escreveu para Dalida, que saía de um período sombrio. O pai de Olivier nascera numa família de extrema-direita, tornara-se de esquerda aquando da sua passagem como funcionário francês na Ilha da Reunião, voltando à direita extrema no final da vida, talvez para enfrentar um mundo que já não percebia. O livro é também a expressão da vontade de prolongar um diálogo, mesmo que difícil, entre filho e pai.

No âmbito dos 50 anos da independência de Cabo Verde, vi o documentário Manuel D’ Novas, Coração de Poeta, o marinheiro no barco Novas Alegrias, donde provém a sua alcunha, que se tornou músico e letrista de cantores como Cesária Évora, Ildo Lobo e Bana. Neu, o seu filho, passou cinco anos a preparar o documentário e a saber mais do pai e da sua obra através dos seus amigos.

Na Basílica de São Pedro, vimos a imagem da irmã Geneviève, que trabalha com a comunidade LGBTQIA+ e que vive há mais de 50 anos numa caravana, ficando longos minutos a despedir-se do seu amigo Papa. Não sei se se terá perguntado: «Ai, Deus, e u é?», mas o que sei é que nem um pai que o sabe ser nem um verdadeiro amigo se apagam.

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