Da estupidez à desgraça

Os últimos tempos parecem obra das bruxas de Macbeth. Eis as ações do presidente americano, que parecem forjadas no fundo do caldeirão para virar do avesso a conjuntura mundial e destruir os alicerces da liberdade, a posição do presidente russo, imperialista e autocrata indiferente à humanidade, o governo israelita e o Hamas num conflito que não distingue culpados de inocentes, uma Coreia do Norte que ameaça os vizinhos asiáticos, o Brasil que se prepara para dar a amnistia aos que invadiram as instituições que garantem a democracia e, na Europa, ventos da extrema direita, embandeirando nacionalismos isolacionistas, aproveitam-se das pessoas pelo medo e pela cupidez.

E o mundo da esperança no desenvolvimento dos direitos e do progresso parece cair enquanto se levantam muros e as bruxas riem.

Porquê? Como chegámos aqui? Porque é que, através do voto democrático, se elegem ditadores e se decide contra nós mesmos? Carlo M. Cipolla, que foi professor de história económica na Universidade da Califórnia, Berkeley, considerava que existe uma constante correspondente ao número de pessoas estúpidas existentes em qualquer sociedade, independentemente do tempo, espaço, raça, classe ou de qualquer outra variável sócio-cultural ou histórica.

Em “The Basic Laws of Human Stupidity”, de 1976, conclui que o problema que está na base de tudo é que subestimamos o número de indivíduos desprovidos de inteligência em circulação.

O objectivo de Cipolla é ajudar os que não são estúpidos a lidar com a estupidez, partindo do princípio que sofremos continuamente de duas situações: a) pessoas que julgamos racionais e inteligentes podem ser parvamente estúpidas; b) no nosso quotidiano somos obrigados a perder tempo com atividades criadas e imaginadas por pessoas que nos aparecem nos lugares mais inconvenientes e nos momentos mais improváveis.

Eis as leis básicas da estupidez humana:

1. O número de pessoas estúpidas é uma constante; 2. A probabilidade de que uma dada pessoa seja estúpida existe independentemente de qualquer outra característica da pessoa (isto é, a probabilidade de estupidez é igual entre os operários, os executivos, os estudantes, os administradores, os prémios Nobel, os professores universitários) 3. Uma pessoa estúpida causa perdas a uma outra pessoa ou grupo sem tirar daí nenhum proveito; 4 As pessoas não-estúpidas subestimam sempre o poder de fazer danos dos indivíduos estúpidos, esquecendo-se que em todos os lugares e em todas as circunstâncias em que têm de lidar e associar-se com pessoas estúpidas acabam por ter de reconhecer no final o erro e enfrentar os custos; 5. A pessoa estúpida é o tipo mais perigoso de pessoa, mais perigosa ainda do que um bandido.

Partindo da ideia de que a constante existe sempre e em qualquer grupo, Cipolla avança com a hipótese de que uma pessoa na própria vida e na sociedade pode ser D, I, B ou E. Se der a ganhar aos outros e perder no campo pessoal, é um D, de desgraçado; caso dê a ganhar aos outros, ganhando também, é I, inteligente; se tira aos outros e ganha é B, bandido; se faz perder os outros e não ganha, é obviamente E, ou seja, estúpido.

O potencial de um individuo estúpido criar estragos depende de dois fatores: o genético (se pertencer a um grupo potente e herdar do seu grupo a posição, o seu poder é negativo) e o conjuntural, isto é, a posição de poder que detém na sociedade (se chegar a posições de controlo, na cultura, no governo, na hierarquia religiosa, etc., as consequências são desastrosas). Mas, porque é que as pessoas estúpidas chegam a essas posições? Primeiro, porque, segundo a primeira lei, subestimamos a sua existência, e também por razões de classe, casta ou pertença a partidos ou movimentos influentes (neste último caso, não esquecer a segunda lei: uma fração da população votante é estúpida e as eleições oferecem uma oportunidade de criar um panorama em que não se não ganha nada e se faz perder também os outros – uma relação menos-menos).

Os estúpidos que dão o poder aos estúpidos perpetuam a estupidez e os danos à sociedade: não deixam os I desenvolverem as suas possibilidades, alimentam-se dos D e apoiam-se nos B. Os I aprendem que podem ser perseguidos sem nenhuma razão, e os B, em conjuntura favorável, podem causar danos improváveis, apanham o outro de surpresa, não permitem qualquer defesa, porque o ataque dos B obedece a um plano lógico. Como escreveu Dickens, contra a estupidez e a má digestão o homem pode pouco.

O que é que acontece no momento em que as bruxas andam à volta do caldeirão?

Cipolla responde com clareza: o número de pessoas estúpidas não aumentou, é sempre uma constante, no entanto, o resto da população nota que nas posições de poder – na cultura, na ciência, na religião, na política – se encontram mais E e B, aproximando-se os B da estupidez e os E do banditismo. É cada vez maior o número dos D, aproximando-se os I da condição de pobreza e impotência. Esta mudança na composição da população reforça o poder destrutivo dos B e a sociedade entra em declínio. “And the country goes to Hell” Menos-menos.

Com as devidas ressalvas ao tom brincalhão e bem-humorado do autor, a verdade é que estamos sempre mais próximos de um momento em que os Bandidos mandarão na ordem mundial e só a lucidez nos poderá salvar, defendendo o humanismo, a empatia, a compaixão, os direitos e os valores. Não o poderemos fazer calados, nem do sofá, sob pena de, sem quase perceber, estarmos todos em condição de desgraça.

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