Tenham piedade!

Perdemos a piedade? A pandemia matou-a?

Vi um vídeo de um casamento onde os convidados, à porta da igreja, atiravam arroz com pás aos noivos que saíam. A aflição dos noivos não bastou para parar o ato?

Noutro casamento, a noiva sujou levemente a boca do noivo com bolo e ele, em resposta, destruiu o bolo na cara dela. A expressão de dor e constrangimento dela não teve qualquer efeito e este comportamento virou moda.

Um jovem foi morto no Porto por ter avisado os seguranças de um bar que havia um grupo a drogar as bebidas das raparigas.

Um vídeo da violação de uma jovem de 16 anos é partilhado e visualizado milhares de vezes sem que ninguém o denuncie – a denúncia só acontece quando a jovem procura ajuda médica.

Um ginecologista condenado em 2012 e novamente em 2022 por abusos durante consultas continua a exercer medicina em Portugal.

“Sem piedade” (No Mercy) é o nome de um jogo publicitado nas redes sociais, onde se marcam pontos a matar ou violar mulheres.

No trânsito, aqui na região, uma mulher faz marcha-atrás por 100 metros, com enormes dificuldades, porque outro condutor se recusa a recuar meio metro, mesmo não tendo ninguém atrás.

Houve agressões entre pessoas à porta de uma loja de chocolates para comprar o “chocolate da moda”.

Hoje sem piedade perguntamos tudo ao ChatGPT e por cada 100 palavras de resposta à nossa pergunta é gasto em média 519 mililitros de água.

As redes sociais fervilham de comentários sobre uma série de ficção em que um jovem de 13 anos mata uma rapariga da mesma idade. A crença de que “só acontece aos filhos dos outros” caiu por terra. Voltou a circular a frase de Margaret Atwood, dita nos anos 80:

“Os homens têm medo de que as mulheres se riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.”

Durante esta campanha eleitoral para a Assembleia da República, os imigrantes em Portugal são usados sem piedade como armas de arremesso – num país onde há emigrantes portugueses espalhados por todo o mundo.

As novelas com mais audiência estão cheias de personagens que, sem piedade, fazem mal aos outros.

Esta semana faleceu o Papa Francisco, filho de emigrantes italianos, um homem que — ao seu modo — tentou defender todos. As redes encheram-se de notas de pesar. Foram tantos os elogios que, perante os acontecimentos que referi, me pergunto: quantos dos que se disseram tristes com a sua partida defendem, de facto, um “mundo mais justo e menos frio”? Uma Igreja aberta a “todos, todos todos”?

A capacidade de antecipar o que provocamos no outro chama-se empatia. E a empatia é um pilar da inteligência emocional. Para onde caminhamos?

Alguém disse: “Quando não temos garantidas as nossas necessidades básicas, a parte mais primária e selvagem de nós vem naturalmente ao de cima.”

E essas necessidades não se limitam às condições materiais — são também emocionais.

Há famílias que têm de abandonar o lar que construíram porque o senhorio aumentou-lhes a renda de forma insuportável. Como é que vão explicar isto aos seus filhos?

Sinto que o mundo está assustadoramente mau. Parece que a evolução que tivemos não assentou como ponte firme.

Anteontem celebrou-se a liberdade.

Para mim, liberdade é respeitar o espaço do outro com piedade. No desrespeito não há liberdade!

“O homem que toma a sua cidade natal pelo mundo é mil vezes mais feliz do que aquele que aspira tornar-se demasiado grande.” — Victor, criador do Frankenstein

“O homem seria de facto simultaneamente tão poderoso e tão virtuoso e, mesmo assim, tão cruel e tão desprezível?” — Frankenstein

Mary Shelley, 1818

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