A obra ao fogo

Às vezes, sonho que estou outra vez a escrever na palhota na Alta Zambézia e depois acordo e sento-me na beira da cama, por exemplo às três da madrugada, e a janela do quarto que dá para o Jardim da Ajuda, no Funchal, é a mesma que dava para a vereda de terra batida no Bairro Artes e Ofícios, no Gurué, e eu estou lá a escrever com muito afinco e dedicação, como se escrever valesse alguma coisa na minha vida, como se escrever fosse a minha fortuna ou, para ser mais preciso, como se escrever fosse a minha única possibilidade de alcançar a fortuna. Estou alagado em suor e tenho uma ventoinha apontada para mim, porque as paredes da palhota são baixas e a cobertura é de zinco, pelo que o ambiente no interior é sempre muito quente, húmido e abafado.

Escrevo. Escrevo. Escrevo.

Acho que nunca escrevi tanto como no tempo em que vivi em Moçambique e cada frase tinha a força de um romance, ou de um ensaio, ou de um poema épico, porque eu reparava em tudo o que me rodeava com uma rara e inusitada acutilância, como se estivesse a ver o mundo pela primeira vez por dentro e por fora. Tudo transbordava de vida exemplar e histórias impactantes, mas também é certo que jamais consegui expressar na plenitude o que acabo de dizer. Jamais.

Talvez por isso, no decurso daqueles cinco anos em Moçambique, tantas vezes sonhei o inverso, sonhei que estava outra vez a escrever na minha terra e depois acordava e sentava-me na beira da cama, por exemplo às três da madrugada, uma hora tão perigosa naquelas paragens, e a janela do quarto que dava para a vereda de terra batida era exatamente a mesma virada para o jardim em casa das minhas tias – o jardim da minha vida, agora um triste jardim abandonado – e eu estava lá a escrever com muito apego e abnegação, como se escrever valesse ouro para mim, como se escrever fosse o princípio e o fim da minha salvação.

Ainda ontem, ou anteontem, depois do almoço, fui tomar um café ao pé de casa e estava a pensar nisto como se estivesse sentado diante da janela, talvez aqui, talvez em África, talvez no cabo do mundo, endoidecido por tanto escrever no vazio, em vazio, para o vazio, quando de repente alguém disse:

– Olá amigo!

Olhei e era um sem-abrigo, um dos vários que conheço, embora não saiba o nome de nenhum, e ele perguntou-me:

– As Páscoas foram boas?

E eu sim, foram boas, vem cá que te dou uma moeda.

E ele:

– Obrigado, mas você hoje está em baixo. Vê-se que está em baixo.

– Estou a pensar – disse-lhe.

Depois, acrescentei:

– Quando um gajo pensa, fica em baixo.

Afinal, acordo às três da manhã – uma hora de magia e mistério, como outra qualquer em que nada acontece – e sei que estou sozinho, porque escrever é um ato tão solitário como morrer. Posso até afirmar que escrever é uma forma delicada de dizer adeus à vida e de mostrar o poder absoluto do nada e eu bem vejo isso às três da madrugada através da janela que dá para o Jardim da Ajuda, em São Martinho, tal como antes o via através da janela virada para a vereda de terra batida no sopé dos Montes Namúli.

Escrevo. Escrevo. Escrevo.

Lá, seja lá onde for, como aqui, onde nasci e cresci, onde agora vivo e onde se calhar hei de morrer, cada frase contém a robustez de um livro inteiro, magistral e cheio de luz, porque eu reparo em tudo com uma invulgar sensibilidade, uma sensibilidade desconcertante, uma sensibilidade que quase me mata. Este é o meu mundo. Esta é a minha terra. Tudo o que neles acontece acontece-me a mim, tal como tudo o que me acontece também lhes acontece, sem tirar nem pôr, mas a verdade é que jamais conseguirei expressar na plenitude o que acabo de dizer. Jamais.

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