Balamento!

O pai não tinha como ganhar alguma vez o ‘balamento’. Todos nós levámos vantagem, acantonados que estávamos no palácio da infância, mesmo que o palácio fosse apenas uma casa demasiado pequena para a nossa contabilidade familiar e ficasse ao cimo de uma escada, ladeada de vizinhos sempre dispostos a ajudar nas nossas vitórias de índios encardidos e sedentos de doces.

Por essa geografia particular, o balamento seria sempre uma batalha perdida à partida para o pai, que parecia feliz nessa derrota que nos traria a felicidade em forma de açúcar. A mãe também entrava no jogo e também ela ganharia sempre connosco. O pai era o único que chegava diariamente de fora e a casa permitia ver o caminho que ele percorria, as escadas que subia de cabeça erguida e talvez com um sorriso a antecipar a nossa alegria de vitoriosos. Nós, aqueles guerreiros sedentos de torrões e amêndoas, de chocolates em forma de coelho e de toda a doçaria que culminaria a imensidão de sextas-feiras sem carne, e dois dias em que a televisão e a rádio entoavam músicas fúnebres e transmitiam filmes da vida da Cristo e sobretudo da sua assustadora morte. Era este o tempo que nos foi dado a viver, com histórias de pecados e infernos e de promessas de paraíso

Para nós, não deixava de ser estranho que não pudéssemos fazer barulho, ou pular, ou bater bolas no chão, ou sermos felizes. Diziam-nos que era como se estivéssemos a matar Cristo outra vez. E nós não queríamos essa culpa, nem matar alguém que já estava morto. Estava comprovado nas imagens e nas estátuas, mesmo que aquela morte fosse momentânea e que logo no domingo os espinhos, os cortes, o sangue a escorrer se transformassem numa luz imensa em volta de um homem subitamente e estranhamente limpo e vivo.

Esta história, vista pelos olhos de uma criança, tinha toda a estranheza desse universo mágico antes dos telemóveis e da internet que tudo explicam. De certeza que se tivéssemos essa pegada digital na altura, ficaríamos isentos do sacrifício, porque existiria um mundo paralelo onde se poderia pecar virtualmente.

Mas o nosso tempo da infância só conhecia a realidade concreta das coisas e dos dias. Mesmo que essa realidade estivesse coberta de contradições. Era assim o luto e a tristeza encenada pela morte daquele Cristo sempre a morrer e a nascer todos os anos. Um luto que permitia o balamento e a alegria diária da nossa vitória sobre o pai. Só isso valia o sacrifício de ficarmos tristes à quinta e à sexta, um bocadinho ao sábado e depois empanturrados de açúcar e alegria no domingo. Aprendemos então o significado da palavra ressuscitar, da mesma forma que aprenderíamos a sua impossibilidade real. Mais depressa do que gostaríamos, descobrimos que só o Cristo e alguns desenhos animados ressuscitavam. A nós estava reservado sermos humanos até o osso, mortais, despidos perante o tempo, mas felizmente dotados de memória e de sonho, o nosso verdadeiro balamento temporário e tantas vezes feliz.

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