Há muito tempo, algures no decurso dos meus 20 anos, talvez já perto dos 30, li por acaso um poema de Walt Whitman, não me lembro em que contexto, nem em que livro, mas seguramente terá sido em Folhas de Erva, e, embora não tenha fixado o teor geral do texto, houve um verso que me marcou como uma navalhada. Dizia assim: Quem caminha duzentos metros sem amar, caminha amortalhado para o seu próprio funeral.
Naquela altura, eu já tinha a perfeita noção de que a vida é assim mesmo, ou seja, uma irremediável caminhada para a morte e essa caminhada só faz sentido se o companheiro de jornada for o amor, não apenas o amor de romance, mas o amor inteiro, incluindo o que conduz à guerra, ao horror e à escravidão, aliás, creio que sempre tive essa noção, desde miúdo, tal como sempre tive a noção da presença de cães na minha existência, talvez até remontando a vidas passadas, mas dito daquela maneira – quem caminha duzentos metros sem amar, caminha amortalhado para o seu próprio funeral – assumiu a forma de uma ferida mágica, uma ferida a sangrar de fora para dentro, com o sangue a escorrer do corpo para a alma, incapaz de cicatrizar.
Desde então, o verso de Whitman aparece escrito em vários dos meus cadernos de apontamentos ao longo dos anos, às vezes no arranque dos textos, às vezes no meio, às vezes no fim, como uma espécie de refrão dentro das minhas histórias e dos meus pensamentos e das minhas observações e de cada vez que o menciono chego à mesma conclusão: Só pode ser por amor. Dei duzentos passos e aqui estou. Só pode ser por amor. Mesmo que não me mexa, só pode ser por amor.
Por exemplo, no dia 31 de janeiro de 2002, escrevi num caderno o seguinte: Tarde calma na Calheta. No caminho até cá chegar, dei duas boleias. A primeira foi a uma miúda gorda, com aparelho nos dentes, entre o Lugar de Baixo e a rotunda da Ponta do Sol. Praticamente não falámos. No fim, ela disse obrigada e eu disse de nada. A segunda boleia foi a um gajo do continente e a uma rapariga que estava com ele. O gajo estava bem arranjado e perfumado e a rapariga também, embora não tão bem arranjada e perfumada como ele. À primeira vista, pensei que fossem marido e mulher, ou namorados, mas talvez não fossem, porque ela era muito mais nova do que ele. Seja como for, não perguntei nada. A viagem foi da Ponta do Sol à Madalena do Mar. Logo no arranque, o gajo disse que era do Norte, de uma povoação qualquer à beira do rio Douro, no interior, e a mulher era professora. Continuei na dúvida, sem saber se se referia à rapariga ou a outra. Olhei pelo retrovisor, à procura da expressão da rapariga, mas ela estava distraída a olhar pela janela. O gajo contou-me que tinham vindo passar férias à Madeira, ele e a mulher, gostaram muito e decidiram ficar cá. Disse-me que inicialmente pretendia trabalhar num hotel na Ponta do Sol, mas não lhe agradou o salário e, por isso, ia agora trabalhar a fazer não sei o quê, uma função qualquer que não fixei, num supermercado qualquer, não sei onde, não fixei a localização, mas calculo que na zona oeste. Disse-me que gostava muito da Madeira, do sossego e da verdura da paisagem. Só é pena que nestas áreas os transportes públicos sejam uma lástima, disse ele, por causa dos horários, note-se, é um agora e outro no fim do dia. Por isso, tenho de andar à boleia, disse ele. A rapariga não proferiu uma palavra em toda a viagem, nem sequer ao sair do carro, e eu fiquei convencido de que os dois tinham um caso, uma cena extraconjugal, mas também pensei que se calhar eram apenas amigos, ou familiares.
Seja o que for, escrevi no caderno, só pode ser por amor.
Depois, escrevi mais algumas coisas sobre o ambiente na Calheta e acrescentei que a tristeza tinha tomado conta de mim naquele dia, mas não explico porquê, acho que tinha um problema amoroso qualquer em curso, uma ameaça de rotura, uma discussão violenta, o fim iminente, como sempre, qualquer coisa assim que me inquietava e me pôs a andar às voltas com o carro para espairecer e no fim do texto aparece outra vez o verso de Walt Whitman: Quem caminha duzentos metros sem amar, caminha amortalhado para o seu próprio funeral.