Deslocado

Quando ouvi falar dos Man on the Couch, era eu Presidente da Junta de Freguesia de São Martinho. Durante os 8 anos em que presidi a essa autarquia, desenvolvemos um vasto programa cultural, tendo passado pelos palcos da freguesia, em diferentes locais, imensos artistas. Músicos, pintores, escultores, caricaturistas, poetas, humoristas, atores, patrocinamos livros, implementámos arte urbana, pusemos simples cidadãos a fazer grafitti. Fomos às raízes da nossa cultura, transformando o Festival de Folclore de São Martinho, numa referência na região, a noite de fado era realmente grandiosa e mostrámos à população outras intervenções artísticas, como o grupo dançando com a diferença, musicais e música tradicional madeirense. Criamos ambientes culturais fantásticos como foram as várias edições do Jardim Arte, ou o Jardim dos Sabores onde juntamos a cultura à gastronomia, juntado em torno da mesa, famílias, amigos, visitantes. Transformamos a freguesia, colocamo-la no mapa cultural. Bons tempos, excelentes memórias, muito gratificante.

Mas voltemos ao início e aos Man on the Couch. A minha irmã mais velha sempre foi uma fervorosa fã dessa banda de miúdos, alguns deles da freguesia de São Martinho e, várias vezes, disse-me que os tinha de contratar para os eventos da freguesia, e, através dela, tentei. Procurei saber da disponibilidade da banda para atuar num dos nossos eventos, mas, nesse período, esses rapazes eram acima de tudo estudantes, deslocados, e restava-lhes apenas os períodos de férias escolares, o que reduzia em muito a janela temporal disponível. Entretanto apareceu a pandemia, os eventos não puderam ser realizados e perdi a oportunidade de os contratar para atuarem na sua própria freguesia, para mostrar aos nossos fregueses o que de bom se faz por cá. Porque, não tenham dúvidas, temos artistas de muita qualidade e sinto muito orgulho nisso.

A primeira vez que vi esses miúdos atuarem foi na Barreirinha, num período de natal, já eles se chamavam NAPA. Um concerto vibrante, cheio de alegria e qualidade, e para mim tornou-se evidente o excelente nível dessa banda. Os rapazes cresceram, arriscaram e foram ao festival da canção, confesso que não tenho por hábito participar nas televotações, mas, por eles, votei e contribui assim para a sua vitória, aliás mais que merecida, apesar da inveja que muitos sentiram lá pelo retângulo continental.

Não consigo adivinhar qual será a sua classificação na Eurovisão, mas tenho a certeza que sentiremos mais uma vez imenso orgulho. Desejo-lhes desde já a maior sorte.

Hoje, quando olho para a minha freguesia, e vejo o retrocesso cultural que tivemos, começo a sentir-me deslocado, num monte de betão que não me provoca nada. Deixamo-nos de nos sentir em casa, e eu quero chegar a casa, quero sentir o mar que nos rodeia, quero voltar a sentir a freguesia que me acolheu há mais de 30 anos, a freguesia dos meus filhos.

Hoje, quero sentir a minha terra, a minha freguesia, a minha cidade, a minha ilha, quero olhar para a frente e sentir a esperança que sim, que é possível sermos melhores, que é possível ter uma terra melhor. Quero sentir que é possível mudar, sim, mudar. Precisamos de novos protagonistas que nos deem a esperança de que a minha terra poderá ser cada vez melhor.

Não nos podemos sentir deslocados na nossa terra, na nossa cidade, na nossa freguesia, nem noutros ambientes que escolhemos. Já fiz a minha luta, prestei serviço público, contribui muito pela nossa terra, agora, é tempo de outros darem o seu contributo por uma terra melhor, para que todas e todos se sintam verdadeiramente em casa.

E porque estamos nas vésperas da Páscoa, balamento irmã.

Duarte Caldeira escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas.

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