Crónica em linha recta

Álvaro de Campos escreveu que: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (…) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho. Nunca foi senão príncipe-todos eles príncipes-na vida (…) Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos. Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?” Veio-me à memória o “poema em linha recta” a propósito de toda a efusividade, bondade e perfeição derramadas nas redes sociais. Sou utilizador de um único sítio das ditas cujas e basta-me. Num exercício de observação, como a maioria das amizades voyeurs que coleccionam amigos sem interacção, fica-se empanturrado de felicidade com as milhentas coisas que se exibe, que se diz e se deseja e cedo se conclui que ali é que se está bem e é ali que apetece viver. Ali ganha-se um cento de amigos do pé para a mão que invariavelmente nos agracia com coisas boas, frases bonitas e inspiradoras, intenções fabulosas, conselhos para a vida. Devo confessar que o que mais aprecio são os retirados da profundeza reflexiva dos textos do Minh´alma, sem menosprezo pelas citações das coisas que o Pessoa nunca disse e imagino se revire na cova com tal paternidade. É ali que se veste a melhor fatiota e se exibe o melhor ângulo para embelezar um qualquer evento festivo, que nos dizem que a nossa fealdade é linda, que se enche o ego à custa da imagem, se consola a necessidade humana de protagonizar, ser amado, idolatrado, cobiçado e é tudo tão consolador e reconfortante à força de gostos. É ali que se enche o orgulho e o coração com o brilho singelo da materialidade, o carro novo, o bordo da piscina, o repasto farto. É ali que todos são príncipes, perfeitos, bem-intencionados, com corações de oiro, felizes à saciedade, com vidas fabulosas, filhos prodigiosos, casas e recheios coloridos, amantes incondicionais da sua terra e os seus superlativos, ainda que se não tenha chão e o deslumbramento dos seus pergaminhos, os melhores do mundo e arredores. É ali que somos todos gente proba, politicamente correcta ou inofensiva, solidários instantâneos na morte de quem nunca se viu mais gordo, efusivos incentivadores do sucesso de outrem para que em nada se contribui e em surdina se invejou e destratou, indignados veementes contra a violência doméstica, a corrupção, a vigarice, a pobreza, a crueldade sobre os animais.

Mas com tudo isto assalta-me um receio, o de enfartar com tanta felicidade, com tanta positividade, o receio que o meu pobre coração dado a fibrilhações não resista a tanta alegria, a tanta coisa boa e perfeita.

Não seria demais pedir se não haverá por ali uma tristezazinha para partilhar, uma invejazita, uma calhandrice, uma sacanice feita a um amigo, uma deslealdade, uma bandidice, uma filha da putice? Enfim, uma coisita menos comum nas nossas vidas maravilhosas, só para desenjoar um pouco e preservar o equilíbrio dos corações em risco?

A propósito desta sensação de enfartamento de bondade e alegria, lembra-me aquele tipo que trabalha numa perfumaria e ao chegar a casa ao fim do dia vai ao wc e exclama prosaicamente: ai que rico cheirinho.

Voltando ao poema “quem me dera ouvir de alguém a voz humana. Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.”

A verdade é que há malta que parece viver literalmente no mundo da fantasia das redes sociais e se isso a realiza e felicita, peço-lhe perdão pelo mau gosto da minha ironia, adepto que sou do princípio do vive e deixa viver. E peço desculpa a Álvaro de Campos por avacalhar o seu poema magnifico.

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