Todos os dias são estranhos

A história perde o sentido quando os protagonistas não se interessam por ela e muitas vezes eu penso que perdi o interesse pela minha vida. De certa forma, é por isto que o meu mundo se mantém inalterado, ou simplesmente tudo nele se mantém apesar das alterações. Este pensamento provoca-me uma enorme angústia – não permanente, claro, ai de mim se assim fosse, mas intermitente – e essa angústia era ainda maior quando eu vivia numa Missão na Zambézia, há mais de quinze anos.

Descontando o lado bom e encantatório da situação, o mal que acontecia na Missão, da mais pequena imoralidade à maior das ofensas à dignidade humana, era do conhecimento de todos, mas ninguém movia uma palha para alterar o rumo das coisas. De facto, quando se sabe tudo, nunca acontece nada. Esta é uma das loucuras do mundo e a vida é assim mesmo.

De repente, apareceu-me uma erupção estranha na testa e eu vi naquilo uma terrível ameaça de morte e comecei a vigiar o meu corpo com redobrada atenção, tentando decifrar a sua linguagem interior, de modo que a opressão foi crescendo e o meu cérebro começou a bombardear-me com recordações estonteantes vindas de todas as épocas da minha vida. O espaço e o tempo sumiram-se e eu pus-me a rezar pela minha salvação, não a Deus, porque não acredito em Deus, mas aos meus antepassados, como se os mortos me pudessem ajudar. Estava doente, só podia ser. Estava gravemente doente. Estava às portas da morte. Mas era tudo estupidez, pura estupidez, pois não há ser vivo no mundo que não esteja às portas da morte.

A ignorância é a mãe de todas as misérias, pensei, e o medo é a porta por onde ela entra. É por isso que se diz que “a coragem nasce na poeira das estradas”.

Depois, numa noite de insónia em que rapei a barba às 03:15 da manhã, descobri um nódulo nas costas. A angústia multiplicou-se pelo infinito e eu perdi, de facto, a noção da realidade. Comecei a sentir-me fora de mim e olhava para o meu corpo com horror, como se fosse já o meu cadáver. Os dias tornaram-se abstratos e confusos. Apenas alguns fragmentos eram nítidos: a mesa de matraquilhos na varanda da escola da Missão, a caravela no rótulo da cerveja Manica, os olhos amendoados de uma aluna macua muito bonita fixados em mim, o giz branco no quadro negro e eu a escrever “o Português é uma língua românica, flexível…”, um boné verde na cabeça de um aluno, a biqueira das minhas botas Dr. Martens, a maçaneta da porta do refeitório, o contorno do Monte Murresse ao anoitecer, uma joeira que eu fiz a voar no céu da Alta Zambézia, a terra vermelha dos caminhos, algumas vozes, alguns rostos, um cigarro Safari aceso entre os dedos da minha mão esquerda, a cadela Rex a correr feliz na minha direção, uma gargalhada que desperta os fantasmas de um amor perdido, uma chama da floresta em flor, a verruga na testa, o nódulo nas costas, uma cena de sexo, a roda de um Toyota todo-o-terreno, uma cobra enrolada num galho de roseira, um rolo de papel higiénico, o amanhecer mais lindo em África, o Cruzeiro do Sul, um par de andorinhas fazendo voos rasantes sobre um gato preto para o afastar da proximidade do ninho, mais um dia que chega ao fim, um berlinde dentro de um sonho, uma ressaca monumental, o nódulo nas costas, a verruga na testa, o rosto de Samora Machel numa nota de cem meticais, Pilatos a perguntar “O que é a verdade?”, o silêncio, o limitar do quase nada…

E, depois, numa noite em meados de agosto de 2010, as formigas invadiram pela terceira vez em três anos o meu quarto e durante a madrugada a temperatura baixou subitamente e a seguir desabou uma tempestade violentíssima, com chuva, vento e trovoada, uma tempestade que durou quatro dias e cada vez mais eu descobria pormenores na alma das pessoas que me alertavam e diziam que eu estava no inferno. Gostava de ter engenho para contá-los um a um, esses pormenores, como fazem os grandes escritores, revelando os labirintos e os recantos mais obscuros do ser humano, mas não tenho arte para tal, além de que nada seria novidade, pois o ser humano é assim desde sempre: potencialmente bom, intrinsecamente mau. Por outro lado, aquele inferno, que eu julgava universal, podia muito bem ser apenas um infernozinho pessoal.

(De repente, assaltou-me a sensação de já ter escrito uma crónica como esta, tudo igual de cima a baixo, incluído o título, o que pode muito bem ter acontecido, pois já lá vão 499 e, de facto, os dias da minha vida são todos iguais, todos estranhos…)

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