Quando eu era criança, perguntei ao meu pai por que a avó falava inglês tão bem, sem qualquer sotaque. Ele respondeu: “A tua avó nasceu em Demerara”. Essa palavra, Demerara, ficou guardada num cantinho da minha memória.
Muitos anos depois, já adulto, recebi uma proposta de trabalho para a Guiana, um pequeno país sul-americano que faz fronteira com o Brasil, a Venezuela e o Suriname. Como o meu conhecimento sobre o país era nulo, resolvi investigar. Ao abrir a página na Wikipedia, encontrei um link “Os portugueses na Guiana”. Curioso, cliquei, e um interessante episódio da história da Madeira apareceu diante dos meus olhos.
Em 1836, a escravatura foi abolida na Guiana, e os ex-escravos negros que trabalhavam na cultura da cana-de-açúcar abandonaram os campos. Esse evento coincidiu temporalmente com a praga da Filoxera na Madeira, um míldio que ataca as folhas da videira, tornando-as cinzentas e, eventualmente, destruindo a planta da uva. A doença espalhou-se rapidamente e causou a morte de quase 98% do que era um dos principais meios de subsistência da ilha. O desemprego, a fome e a miséria resultantes levaram muitos madeirenses a optar pela emigração. Algumas dezenas de milhares foram para a Guiana trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar. Os navios desembarcavam os passageiros num cais situado no rio Demerara, que também era a região do país onde se situava grande parte das plantações. Por isso, entre os madeirenses, o país, apesar de se chamar Guiana, era popularmente conhecido como Demerara.
As condições que os nossos antepassados encontraram eram muito duras: insalubridade, longas horas de trabalho extenuante, humidade, calor tropical, febre amarela, malária. Muitos morreram! Após alguns anos, vários dos nossos conterrâneos, já libertos dos seus contratos de trabalho, tiveram a iniciativa de abrir lojas na periferia das plantações, onde vendiam produtos importados da Madeira, como bolo de mel, vinho madeira, batatas, cebolas, etc. Esses negócios prosperaram significativamente, e muitos madeirenses tornaram-se bastante ricos, tanto que, em 1850, aproximadamente 50% das lojas em Georgetown, a capital da Guiana, pertenciam aos nossos antepassados.
Os colonos britânicos, desagradados com a prosperidade desses “brancos mais escuros” do que eles, vistos como concorrentes diretos dos empresários britânicos e de grupos estabelecidos, seguiram a velha tradição britânica de dividir para reinar e fomentaram um sentimento de hostilidade contra os portugueses, retratando-os como exploradores e responsáveis pela crise económica que afetava a população negra. Utilizando a imprensa local, espalharam discursos contra os portugueses da Madeira, pintando-os como forasteiros oportunistas. Quando os primeiros motins e saques contra comerciantes portugueses ocorreram em 1856, as autoridades britânicas demoraram a reagir ou foram lenientes com os agressores quando estes atacaram lojas e propriedades. Isso incentivou mais ataques, pois a impunidade permitia que a violência continuasse. Dessa forma, enfraqueceram a influência económica dos madeirenses e garantiram uma maior supremacia sobre a economia da Guiana.
Quando a Guiana conquistou a independência, em fevereiro de 1970, Forbes Burnham tornou-se primeiro-ministro do novo estado. Este, um marxista empedernido, promoveu várias expropriações que incluíram muitos dos negócios e propriedades dos descendentes dos emigrantes madeirenses, o que levou a um êxodo significativo da comunidade principalmente para os EUA, Venezuela, Canadá e Trinidad e Tobago.
Como consequência, os descendentes dos portugueses naquele país sul-americano ficaram reduzidos a algumas centenas, crescentemente afastados das suas raízes insulares, do idioma dos seus avós e das suas tradições. A Madeira passou a ser apenas uma memória distante, a terra exótica dos antepassados, sobre a qual muito pouco se sabe. Restam os nomes, como Gouveia, Fernandes, Teixeira, Sousa, etc., que se encontram em placas de negócios, supermercados, hotéis e que nos fazem recordar que neste país deixamos uma marca!