O sol inteiro tem-nos visitado nesta estação invernosa e até as noites estreladas lembram já o Verão. Ao final da tarde, tenho ido deliciar-me com a coreografia do mar da Calheta – ondas de todos os tamanhos, umas escarpadas, outras mais ondulantes num bailado que amansa a alma e fermenta o sonho. Todos sabem o quanto esta ponta da ilha se transforma e renova. Ora está bem areada, ora cheia de rocha saída não se sabe de onde. Imperturbável, o Ilhéu da Cal, observa-nos, testemunhando ao longo de tantos anos, sorrisos, juras de amor, promessas de fidelidade, os primeiros passos de uma criança ou o primeiro mergulho de cabeça para a poça, mas também algumas lágrimas e até gritos de socorro. Rocha entre dois lugares, açoitada pelo vento e pelas vagas, este ilhéu é ombro. Acreditem!
Sente-se um acréscimo de movimento e os espaços que haviam encerrado voltaram a abrir portas proporcionado uma oferta mais alargada. Se, em Janeiro, ao passar pelas ruas quase despidas, só se ouviam idiomas estrangeiros, agora predomina o sotaque madeirense. Nem mesmo o mar revolto assusta “os vizinhos” que gostam de cá vir e beneficiar do sossego que não há na época alta. Como os compreendo! Haverá coisa melhor do que o silêncio de uma praia deserta?!
O grupo Folclórico do Porto Santo organizou a II Edição do Festival de Sopas e lá fomos todos para o lado do Espírito Santo. Além dos comes e bebes, com especial destaque para as sopas, o festival contou com a presença de vários grupos de cantares. Vozes de cá de dentro e de fora animaram esta que é uma iniciativa de valor e merecido reconhecimento. Por falar em valor, a Vera Menezes reabriu a Loja do Profeta após uma remodelação. Também lá fui prestar a minha homenagem e gratidão pelo trabalho que têm feito pela preservação do artesanato do Porto Santo, não só através da manutenção do saber fazer de outrora, mas também através da inovação e renovação deste legado. Estou grata!
Já que falei em legado e saberes de outros tempos, vou aproveitar para vos falar do Romão Faria Dias, meu primo por afinidade, já que nos une o apelido Faria. De sorriso fácil e boa disposição, o Romão vive de braços abertos – para os seus, para os outros e para a vida que encara de frente, com grande sentido prático. Não há problemas, apenas soluções e podem crer que para ele tudo se resolve, nem que seja deixar para amanhã e esperar para ver. O seu sentido de humor anima os dias que seguem por vezes arrastados e quebrantados e quando menos se espera presenteia-nos com uns versos, numa espécie de repentismo moderno, acutilante e perspicaz. Bem tento tomar nota, mas não só é tão espontâneo e rápido como é irrepetível. Romão possui a sabedoria da escola da vida, dos tempos em que se crescia na rua e nos fazíamos rapazes e raparigas com todas as letras. Há dias, quando íamos os dois em serviço, olhou pelo vidro do carro e disse:
– olha, tá cheio de caternetas!
Eram azedas que cobriam os campos da Camacha, tingindo de amarelo as bermas das ruas e as encostas. Vieram-me à memória as palavras de Maria do Rosário Pedreira:
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavraque nunca escreveremos.
E em estado de graça, seguimos caminho.