As sombras magoam a terra, no lugar exato em que o sol a queimou. É como a chuva que faz tombar o que o vento tornou frágil, depois de uma noite de açoites.
Está assim o mundo. Estamos nós. Sempre à espera do que acontece para piorar o que já está mau. Quando temos esta perceção (e temos de a ter, porque, todos os dias, imagens de dor nos entram pela casa adentro), faz sentido a definição poética de Stephen, personagem do romance Ulisses, de James Joyce: «Deus é um grito de rua».
[Serve para isto a poesia: para dizer o que não se sabe de outra maneira, porque as palavras do dia-a-dia não são suficientes para as coisas importantes]. Na verdade, Deus grita nas cidades destruídas pela loucura dos homens, no chão ressequido das florestas; nas barrigas de fome das crianças; nas mãos vazias dos jovens que não terão futuro. A voz de Deus faz-se ouvir na carne da terra, na humanidade das lágrimas, no sibilar das balas [já nem sei se há balas, nas guerras contemporâneas, nos silêncios desesperançados de quem não tem nada de novo a propor, nos segredos dos coisas ruins. A voz de Deus está lá, mas o barulho é tão grande que não se consegue ouvir.
Saber disso já é maravilhoso. Isso significa que Ele habita o real, mesmo quando ele está vestido de medo e de morte. Mesmo nas noites destes dias que nos angustiam, Ele está. E grita. Às vezes, sem palavras, mas grita. Às vezes, sem se mostrar, mas grita. Grita, mas o barulho em nós é tal, que não O escutamos.
Talvez se pudéssemos vislumbrar, neste caos, a poesia desse grito, o amor desse grito, fosse mais fácil perceber o rasto de divino que se inscreve nesses lugares, a luz que se desenha nesses negrumes, os sinais de vida que renascem dessas mortes. Talvez se parássemos para olhar com atenção o que acontece, nos apercebêssemos que há estilhaços dos gritos de Deus que impedem tanta gente de lutar pela paz, que levam tanta gente a servir, sem esperar nada em troca, que fazem com que ainda estejamos aqui, assim.
O grito de Deus é um poema. Está na rua. Na nossa. Porque é lá que Ele habita. Connosco.