No início, poderia ter sido a palavra, até poderia ter sido a ilha, mas no início foi a dança. No início da criação foi também a partilha pois o que vi naquela noite no Grand Théâtre do Luxemburgo foi um ato de generosidade, talvez já evidenciado no título Alter Ego. A companhia Alfonso Losa com o bailaor do mesmo nome e a bailaora Paula Comitre, com os cantaores Rocío Luna e Ismael de la Rosa e o guitarrista Francisco Vinuesa transformaram aquele grande teatro no Gran Tablao, sendo este último o que está por debaixo dos pés de quem dança, mas também onde nos encontramos para dançar. Havia uns movimentos em que os bailaores com as mãos-em-asa torneavam sobre si próprios, e, acreditem, faziam a terra girar mais depressa, tão depressa que fevereiro ganhou, pelo menos, mais um dia. Ali, esbateu-se qualquer fronteira entre palco e plateia, era o Schengen da dança, mas não só para os que já estavam dentro.
Depois, veio março com a pergunta da coreógrafa e bailarina portuguesa de raízes angolanas, Piny, com Lúcia «Baronesa» e Keemy: Pode uma pequena dança mudar o mundo? Misturando danças de rua, danças tradicionais – com enfoque no Norte de África – e o clubbing, a bailarina-arquiteta pensa que os palcos institucionais – como lugar de privilégio – se tornaram pouco políticos. Por mais pequena que seja a dança pode ser o veículo certo para nos pôr em contacto uns com os outros, e há que repensar a dança que chega ao palco sob a forma de entretenimento. Para isso, a plateia não poderá ser só passiva e o palco não poderá ter o monopólio do que é ativo. Quando se dança, migra-se o corpo e encurta-se a distância: Schengen para cá! Naquela noite no Trois C-L, uma casa para a dança num bairro bastante miscigenado, no Luxemburgo, houve hip-hop com capoeira, música urbana e afro com vozes que talvez já não existam de uma recolha do Giacometti, em Aljezur, plural de al jazira, ilha, o que seguramente não somos quando expomos o nosso corpo ao outro, na dança, sentindo-nos em casa.
Na noite de 7 a 8 de março, em Estrasburgo (França), teve lugar o segundo evento em que o Teatro Nacional de Estrasburgo (TNS), e os alunos, antigos e novos, da escola do mesmo Teatro o põem em ação. Desta vez, o tema era «Suprime-me se puderes», dedicado à cultura do cancelamento, e à renegociação da nossa história comum que isso poderá implicar. No intervalo das discussões, assistiram-se a atuações de alunos do Teatro e convidados, incluindo Alice Manuel Lopez Djebli que contou que quase se cancelou fisicamente porque outros pensavam que ela não tinha lugar, quase se convencendo disso. Havia, numa das paredes, papéis que se iam colando com desenhos, pensamentos e dizeres para uma discussão que ainda não tomara forma. Com o avançar da madrugada, e da palavra, a discussão tomou a forma de dança onde todos tiveram lugar.
Cabe-me também felicitar o PÚBLICO pelos seus 35 anos e por nos ter proporcionado uma conferência sobre a língua portuguesa por essa ocasião. Por aí andou, por exemplo, Telma Tvon, que disse vir de Angola e do hip-hop. Fui à procura dela e encontrei-a no álbum Samba de Guerilha do Luca Argel. Ouçam-no, e sigam a ordem das faixas pois é uma narra[can]ção. Foi bom ouvir da boca de Florbela Paraíba, presidente do Instituto Camões, uma compreensão da língua portuguesa que é pluricêntrica e pluricontinental, a importância do ensino da língua portuguesa no acolhimento de migrantes, em Portugal, e o reconhecimento das diferentes variantes de português, no mundo. Como relembrou Eliane Brum – jornalista brasileira e cofundadora da plataforma de jornalismo Sumaúma, feita a partir do interior da Amazónia –, para o povo Guarani Kaiowá, a palavra é palavra que age, se não agir não é mais palavra.