Os perigos do método científico (Conclusão)

O carro do bispo, conduzido pelo seu secretário particular, parou à frente da Esquadra da Polícia, onde o minúsculo Comandante se encontrava à porta, com o boné imponente e assustador enfiado na cabeça. O bispo apeou-se com lentidão e entrou na Esquadra cheio de cerimónia.

– Aqui está o rapaz – disse o Comandante, com um sorriso mentiroso.

O postulante Muikinavahia estava sentado numa cadeira, muito quieto. No canto esquerdo da boca havia uma mancha de sangue coagulado e via-se que não tinha dormido um minuto desde que ali entrara, há três dias. Ao princípio não reconheceu ninguém, mas depois deu de si e apareceu-lhe uma espécie de sorriso nos lábios, embora não fosse de facto um sorriso.

– Senhor bispo, eu não fiz nada de mal…

– Eu sei – disse o bispo, pondo-lhe a mão no ombro. – Vamos para casa.

O postulante Muikinavahia ergueu-se com dificuldade e quando chegou à beira do carro revirou os olhos e perdeu os sentidos. Então, levaram-no para o hospital e, enquanto o bispo lá esteve, o pessoal foi muito atencioso e profissional, mas assim que se foi embora, esqueceram-se dele e só o foram ver a altas horas da noite. Nessa altura, ele estava a dormir profundamente, tão profundamente que até parecia não respirar, estendido na cama de barriga para cima, com a sua camisa vermelha com florezinhas azuis e colarinhos pontiagudos toda amarrotada e suja.

No dia seguinte, o bispo ordenou a presença no Paço Episcopal dos três padres afetos à diocese, com urgência, e quando lá chegaram ofereceu-lhes um cálice de vinho Madeira de boa colheita. Beberam em amena conversa, como se aquilo fosse o prelúdio de um banquete, mas, de repente, o bispo pediu silêncio.

– Isto não é uma festa! – Disse, com voz de trovão.

Todos baixaram os olhos.

– Onde estavam vocês, homens de Deus, no momento em que o postulante Muikinavahia sofria a incompreensão e a injustiça terrena?

O bispo estivera ausente durante três dias e agora exigia explicações, mas a resposta foi silêncio e imobilidade. Nisto, alguém bateu à porta. O bispo fez um sinal com os olhos para que o secretário fosse abrir. Pouco depois, o secretário regressou e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido e o horror nasceu no seu rosto.

– Faça-o vir cá – disse. Depois, virando-se para os padres, declarou:

– Agora mesmo ser-vos-á comunicado o resultado da vossa indiferença face ao sofrimento do postulante Muikinavahia. – E, de repente, ocorreu-lhe citar São João Baptista, um santo que muito estimava por ser comedor de gafanhotos, o seu petisco favorito:

– Raça de víboras!

Quem entrou na sala foi, nem mais nem menos, o diretor do Hospital Distrital.

– Diga, senhor doutor – ordenou o bispo.

O diretor do Hospital sentiu logo o ambiente pesado que pairava na sala e, por um instante, acanhou-se. Mas como todos continuavam cabisbaixos, decidiu falar sem rodeios:

– Infelizmente, o jovem Muikinavahia faleceu esta madrugada.

Várias interjeições de espanto percorreram a sala, mas ninguém ousou falar, a não ser o bispo:

– Ouviram, raça de víboras?!

E logo a seguir sentiu uma dor acutilante na cabeça, tão forte que o obrigou a sentar-se. Entretanto, o diretor do Hospital explicou que o postulante Muikinavahia padecera de febre muito alta durante muito tempo e por isso morreu. Avançou ainda com mais umas explicações, mas ninguém entendeu nada. Eram termos médicos incompreensíveis. Pouco depois, o bispo agradeceu a sua vinda ao Paço Episcopal e disse que se podia retirar. O diretor do Hospital afastou-se, mas parou no limar da porta.

– Quer saber quais foram as últimas palavras do jovem Muikinavahia?

O bispo abanou a cabeça que sim, enquanto massajava as têmporas com a ponta dos dedos.

– O jovem Muikinavahia disse que na plateia cabiam no máximo 125 pessoas sentadas. Depois, disse que tinha muita pena, mas não fora possível aplicar o método científico em relação ao balcão e, por isso, não podia afirmar com precisão quantas pessoas cabiam ao todo sentadas no recinto.

O diretor do Hospital ficou a olhar para o vazio e depois disse:

– Estava a delirar.

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