Temos (mesmo) de falar sobre pobreza

Hoje, volto a escrever sobre a pobreza. Aquela que se perpetua no ADN (ou DNA, iniciais da designação em inglês DeoxyriboNucleic Acid). Não no partido político português, com as mesmas iniciais. Faz hoje, uma semana, que Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República presidiu, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), à Sessão de apresentação do livro de homenagem a Alfredo Bruto da Costa. Uma apresentação em género de homenagem a um homem que foi Ministro, Conselheiro de Estado e que se dedicou, até morrer, em 2016, ao estudo da pobreza e exclusão social. O seu primeiro artigo data de 1964. A obra, ‘Homenagem a Alfredo Bruto da Costa – Estudos sobre a pobreza e a exclusão em Portugal’, apresenta-se muito para além de um conjunto de ensaios e estudos, de duas dezenas de investigadores, que exploram as questões da pobreza, em diversos grupos populacionais. Reúne testemunhos sobre Alfredo Bruto da Costa e foi coorganizada por Fernando Diogo, Pedro Perista e Paula Campos Pinto. A transmissão da pobreza entre gerações é mencionada no texto escrito pelo Presidente da República, destacando a necessidade de quantificar a pobreza, mas também de a entender, ou seja, «compreender quais as suas causas, avaliar as suas consequências, distinguir pobreza e exclusão social, problemas que, apesar de distintos, coexistem muitas vezes na mesma pessoa, família ou comunidade», acrescentando a necessidade de, uma vez por todas, se «saber que não se socorre a pobreza, como se socorrem problemas imediatos, porque a pobreza passa de geração em geração».

A mesma pobreza sobre a qual escrevi em janeiro de 23, num artigo que intitulei “Da revolução da epigenética: a neurociência da pobreza”. Ainda no mesmo artigo, afirmava que a neurociência da pobreza destacava, estudo após estudo, uma realidade que nos dizia, entre tantas outras certezas, que qualquer ser humano que nascesse, crescesse e fosse criado no stress crónico da pobreza, seria um ser humano diferente, química e neurologicamente falando, de um outro ser humano, que não tivesse crescido num ambiente pobre. A pobreza é realmente uma sucessão de traumas. Está integrada no ADN e, tudo isto, começa na infância. Na vida intrauterina, mais precisamente. Consciente da necessidade de reduzir a pobreza infantil, Fernando Diogo, investigador e professor da Universidade dos Açores e um dos coordenadores da obra, num dos capítulos da mesma, considera que só uma parte da solução está nos apoios do Estado. Do Estado Social. Sublinha mesmo, que uma situação de pobreza, na infância, «tende a ter consequências no desempenho educativo e, um pior diploma, tem como consequência, uma maior probabilidade de pobreza, via um emprego menos remunerado», defendendo aqui a ideia de grandeza do peso que a infância tem na vida adulta, ao longo de todo o ciclo vital, lembrando, deste modo, que «o que se passa na infância, não fica na infância». Sobre esta carga hereditária, o mesmo investigador afirma que «o professor Bruto da Costa tinha a perceção de que a pobreza tem uma forte componente intergeracional. Em vários aspetos, e não só na pobreza, o que se passa na infância tem um impacto duradouro na vida dos indivíduos».

Numa outra análise incluída na obra, um outro exemplo concreto: «Uma situação financeira adversa enquanto criança está assim associada a uma probabilidade quase três vezes maior de viver em pobreza multidimensional em adulto». São afirmações de peso. Num estudo que procurou fugir a uma via clássica de investigação, baseada apenas nos rendimentos financeiros da população portuguesa, no qual foi usado um conceito alternativo para medir a pobreza. Foram 21, os indicadores de privação e exclusão social selecionados, todos com o objetivo de «abarcar a realidade multifacetada da pobreza». E, a partir daqui, sempre que uma pessoa está privada de cinco ou mais indicadores, considera-se que vive numa situação de «pobreza multidimensional», lê-se no capítulo da autoria de Nuno Alves, do Banco de Portugal. Ser incapaz de pagar uma despesa inesperada, ter em atraso rendas, prestações ou outras despesas, viver numa casa sobrelotada, não a conseguir manter aquecida, não ter acesso a atendimento médico ou dentário, por incapacidade financeira ou não ter trabalhado no ano anterior, por razões de saúde, estão entre esses indicadores. Se queremos combater a pobreza, temos que nos soltar das ideologias dos séculos XIX e XX. Temos que dar uma verdadeira atenção à realidade portuguesa, à nossa psicose da pobreza. Está bem analisada no livro. Ela existe, de facto.

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