Da minha janela, vejo o mar. A luz do sol reflete na água e os raios que me chegam aquecem-me a cara. Até me cegam os olhos. Da minha janela, ouço a vizinha a dar-me os bons dias. Diz-me que a camisola da minha mãe caiu da nossa janela, no terceiro andar. “Que noite ventosa! Mas passa lá em casa daqui a pouco, que já ta dou e aproveitas para levar umas fatias de bolo de cenoura que fiz.” Foi difícil perceber a frase toda, abafada pelas cordas vocais ativadas da minha outra vizinha, que chamava o filho para almoçar.
Esta foi parte da minha realidade enquanto crescia no Bairro das Malvinas, o sentido de comunidade. Mas não lhe estou aqui a querer pintar um quadro cor-de-rosa. Crescer num bairro social com dificuldades económicas é, para muitos, sinónimo de desafios. A precariedade das condições de vida e o olhar julgador de quem nunca lá pôs um pé tornam o caminho mais difícil. É como se estivéssemos marcados à nascença, sem hipótese de fugir aos, “mas”. “Mas é das Malvinas.”
Contudo, há uma verdade que não se apaga: é em bairros como este que encontramos laços humanos mais fortes do que o cimento gasto dos prédios.
Viver nas Malvinas e estudar no Funchal era sinónimo de ouvir piadas dia sim, dia não. “Também andas na droga, então? Vou esconder a carteira” ou “Não posso ir à tua casa estudar porque a minha mãe tem medo que me façam mal.”
Foram muitas as justificações ou medos sem fundamento que ouvi. Entendo que haja esta perceção— que até hoje se perpetua — sobre quem vive num bairro social. O que não entendo é como podemos quebrar esta ideia pré-concebida de que quem cresce num bairro social, e no caso específico das Malvinas, tem inevitavelmente ligações à droga, ao crime, à violência…
Recentemente, vi atentamente a reportagem da Linha da Frente da RTP, intitulada “A Droga da Ilha”. Um trabalho que está bem feito, é importante e é necessário sobre um flagelo visível por toda a Madeira. A jornalista entrevistou, e bem, consumidores de droga do Bairro das Malvinas, pessoas conhecidas por quem lá vive. Contudo, só peca por um comentário que faz: “No Bairro das Malvinas em Câmara de Lobos, o difícil é encontrar quem não esteja ligado aos consumos.” E isto não podia estar mais longe da verdade.
No Bairro das Malvinas vivem jovens, pessoas, que se formaram e que hoje são enfermeiros, psicólogos, jornalistas, advogados, entre outras profissões. Pessoas que lutaram e estudaram para que os outros as deixassem de ver como meras estatísticas. Colocá-las no mesmo saco de quem se perdeu pelo caminho é, no mínimo, insultuoso.
Sim, infelizmente, há o flagelo da droga. Sim, vimos vizinhos sucumbirem à tentação de um escape que prometia alívio, mas cobrava um preço demasiado alto. Mas o preconceito de quem nunca viveu a nossa realidade não nos define.
O que nos define são os valores que levamos connosco, mesmo quando deixamos o bairro: a generosidade, a resiliência, a certeza de que ninguém se faz sozinho. Quem cresce num bairro como o das Malvinas aprende cedo que riqueza não é ter muito, mas saber partilhar o que se tem. (Obrigada, vizinha, pelo bolinho de cenoura.)
Durante muitos anos, lutei internamente com o facto de ser das Malvinas, devido à conotação negativa que o bairro carrega. Hoje, digo orgulhosamente: sou das Malvinas. Já trouxe amigos estrangeiros de várias nacionalidades e percursos profissionais para visitar a Madeira e todos ficaram alojados na minha casa, nas Malvinas. Inclusive, vários regressaram. Porque o que há de bom no bairro ultrapassa o que há de mau, mesmo sendo o flagelo dos consumos que aterroriza alguns dos seus residentes.