Memória

Às vezes regresso em sonhos à casa da infância. E é sempre como se não tivesse saído de lá. A memória é um mecanismo preciso de viajar no tempo.

Entro pela porta de ferro, as escadas vão dar ao quintal, onde o pai está encostado ao pagão com o cigarro entre os dedos amarelados

O pai sorri, feliz de estar entre nós.

A mãe está ao fundo, onde se entra para a cozinha. Talvez esteja a fazer os bolinhos na frigideira, um dos sabores inimitáveis da infância.

Outro dos sabores é o do bolo de bolacha da senhora Isabel. As bolachas molhadas em café preto, o recheio de chocolate derretido. As camadas que se sobrepunham numa construção doce, com côco a finalizar como uma chuva mágica. Tão mágica como a casa das três laranjeiras e do grande cão preto e branco que me acompanhava pelas sombras.

Mas talvez nenhum outro sabor da infância regresse mais vezes à memória como o da sandes de omelete que o meu pai comprava num café que existia na Praça da Cruz Vermelha, a Flor do Torreão. Era paragem obrigatória antes de me deixar no colégio.

A sandes de omelete era depositada pelas mãos trémulas do meu pai dentro da minha cesta de almoço e ficava ali com aquele cheiro familiar de apaziguar despedidas e longos dias antes do regresso a casa.

Quando a desembrulhava, era como regressar às mãos trémulas do meu pai. Aquelas mãos que pareciam recear qualquer coisa do mundo que o assustava por dentro. Não sei se o medo do presente, ou algum medo futuro, imprevisível ou demasiado previsível para ser ignorado ou esquecido.

As mãos trémulas do meu pai estavam sempre a adivinhar catástrofes, fins do mundo, mesmo quando os dias se faziam felizes e luminosos. Havia no meu pai uma reserva de tragédia. Algo que lhe tinha crescido nas extremidades, talvez quando se fez, demasiado cedo, o homem da casa.

Talvez a tragédia acompanhe a ausência de infância naqueles que não a viveram na totalidade.

A sandes de omelete que o meu pai comprava marca a minha infância total, sem reservas e sem medos. E era tudo isso que eu desembrulhava no recreio, e é ainda tudo isso que regressa sempre que, em casa, misturo ovos, cebola e salsa. Regressam as manhãs, o colégio, o café da praça da Cruz Vermelha, a minha visão das pernas dos adultos encostados ao balcão, o cheiro forte a café, a sandes a ser guardada na minha lancheira e, por cima de tudo isto, as mãos trémulas do meu pai, a memória.

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