A tia da Austrália

Hoje a minha prosa é para a tia da Austrália que era uma das nove filhas do avô Soisa. Lembro-me dela desde quando eu era uma buzica. Consigo ainda vê-la a lavar, com muita força de esfregadelas, a roupa da avó Gusta, que na verdade era Augusta, no poço de lavar. Só depois é que ela foi para a Austrália.

Desse tempo, há um episódio de inocência e indiscrição que vou contar, pois pode ser que alguma criatura, rapaz ou rapariga da minha idade, se reveja aqui, e possa voltar aos velhos anos 60 do século passado.

Pois aqui vai. Cada uma das nove tinha um dia específico da semana para cuidar da avó Gusta, que já era bem velhinha. Nesse tempo não havia reformas para os velhinhos e os filhos é que cuidavam deles e os alimentavam. Bem pensado! Ora, a tia da Austrália, que nesse tempo era simplesmente a tia Maria José, claro, que também tinha o seu dia e veio do Lombo da Quinta a este lado, para esse dirige. Passou na nossa casa para falar com minha mãe e eu fui com ela a casa da avó. Lá nas suas voltas, a tia pegou na avó e pô-la numa cadeira de madeira com um buraco no assento para ela fazer os seus precisos no bacio que ficava por baixo. A cadeira tinha uma portinhola atrás para abrir e fechar para as limpezas. Eu, rápido, sem minha tia ver, meti a cabeça na tal abertura de trás, para ver como eram as partes da avó, porque nunca tinha visto nada disso de gente grande e eu queria saber como era aquilo. Minha avó enxotou-me com a mão, mas coitada, nada podia fazer, porque eu desviava-me da mão dela e teimava em querer ver, malcriada, mas não via nada, porque estava tudo escuro. Minha tia veio ver o que era sem eu esperar e encontrou-me naquela pose. Eu atrapalhei-me para desencaixar a cabeça do buraco que era cativo e subiu-me um calorão à cara. Minha tia, menos mal, não brigou comigo, pelo contrário, e disse muito calma: “Não se faz isso, olha que a avó pode fazer pipi e cai-te em cima”. Eu estranhei, mas passou-se… Depois, fomos a casa de minha mãe num instantinho e as duas riram e falaram baixinho, mas eu percebi que falavam de mim. Ninguém me deu um puxão de gadelha e isso foi bom! Gente grande também ri de coisas tontas!

Entrementes, a tia embarcou para a Austrália, o tempo correu, eu cresci, esqueci esse episódio. Quando veio a novidade de que a tia da Austrália vinha à Madeira ver a família, eu fiz um grande esforço para me recordar dela. Minha mãe ajudou relatando o tal evento. Quando a tia da Austrália chegou, parecia que eu a tinha visto ontem. E o que mais me impressionou foi constatar que a distância não arrefece o elo entre as irmãs, sempre a tagarelar. Se há coisas lindas no mundo, e há, esta é uma delas.

Ora, a tia da Austrália trouxe coisas da Austrália à gente. Esvaziou a mala e foi distribuindo. Quem não ficou muito contente foi a tia Elvira, que estava à espera de receber isto e aquilo e teve um presente que não lhe agradou. Por isso não fez mais nada, embrulhou a lembrança num papel, chamou um pequeno, deu-lhe 5 escudos e disse-lhe: “Olha, amigo, tu vais acolá-lém àquela casa, e tu dizes que é para entregar isto à senhora que veio da Austrália”. E o pequeno disse: “Sim senhora!” e lá foi, todo contente com as 5 patacas. Claro que a tia da Austrália sabia que a tia Elvira era arisca e tudo perdoou. O presente da Austrália, nestas voltas e baldrocas, veio bater outra vez às mãos da tia Elvira e não tem muito tempo que o revi e o apreciei na gaveta da tia Elvira.

A tia da Austrália voltou mais vezes visitar a gente. Da última vez que veio, trazia vestido um casaco branco, minha mãe já estava entrevada e disse-lhe: “Eu gosto do teu casaco”. Pois a tia da Austrália tirou-o e abafou minha mãe com ele, e disse: “Tu gostas? Pois é para ti!” e minha mãe que não, “ó pequena, eu não caminho de casa, não é preciso, não…!”

E ambas choraram naquele abraço! Eu também!

Ainda há purezas raras neste mundo de engano!

Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas.

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *