Casa

Tenho uma mania estúpida: às vezes ponho-me a repetir uma palavra até ela soar estranha, diferente, praticamente rasgada. É isso, é como se a repetição rasgasse a palavra. Acontece nos momentos em que estou a fazer algo que me permita fugir a cabeça à tarefa, como cozinhar ou estender a roupa. É uma espécie de modo automático em que uma palavra se torna o centro do meu pensamento.

E começa assim: a palavra surge, eu vou repetindo, ela vai crescendo, crescendo, até que se transforma noutra coisa. Ou melhor: transforma-se em algo maior.

Este mês, a palavra que mais me ronda é casa. Repito-a algumas vezes, ao longo do dia. E da palavra passo à imagem e a imagem desdobra-se numa série de lembranças.

Experimentem: casa casa casa casa casa. A língua a cortar a palavra aos bocadinhos. Esta lengalenga esmiúça a palavra e, além da análise ao som, passo a contemplá-la de forma diferente.

Logo se torna asa asa asa asa – asa do quê? Do ninho? Ou do que nos faz voar? Não deveria ser nas nossas casas o espaço de maior liberdade? De soltar a gargalhada? De dançar de forma desajeitada? De não disfarçar o corpo? De não cobrir as vontades? De não ter medo de quem lá está?

De repente, deixa de ser casa e passa a ser cz cz cz cz cz, uma espécie de sangue a pulsar na cabeça, no pescoço, no peito, nos pulsos. Casa que passa a ser corpo sagrado. Casa que se quer partilhar com quem se gosta – não, não com quem se gosta, isso é coisa pouca – casa que se quer partilhar com quem nos conhece a casa dentro da casa: o coração. E cuida dele.

Em “Pequena Coreografia do Adeus”, de Aline Bei, Júlia, personagem principal que não teve a infância mais feliz, quando volta à casa da mãe, com quem tem uma relação particularmente difícil, diz “dou uma última olhada/ para aquele lugar que/ mesmo não sendo mais o meu/ ainda é/ a imagem que me vem à mente/ toda vez que escuto ou digo a palavra casa.”. E isto faz-me perceber que tenho muitas casas. A da mãe e a do pai. Fiquem onde ficarem. Se eles estão, é casa. A do irmão e a dos avós. A dos tios. E se os primos estiverem, mais casa se torna. Casa é onde vivi com o meu melhor amigo em Coimbra, ainda que Coimbra não tivesse sido casa. Casa é a anoneira que subia todas as semanas quando era pequenina. É onde estão os meus livros. E os meus gatos. E o espírito de todos os meus animais que já partiram. Casa é onde cheira a limpeza. Ou a incenso. Ou a velas. É onde posso chorar. É onde já fui feliz. E também onde já sofri. Casa é o acolhimento de todo o meu crescimento. É onde escolho o que quero e não quero. É onde me despeço do antes e digo olá ao presente.

Casa casa casa casa

A palavra que se edifica na minha cabeça, bloco por bloco, parede por parede, janelas com cortinas, armários de vidro a esconder os copos de vinho.

Casa casa casa casa

Onde reverbera a música que já ouvi e a que oiço agora. Onde guardo fotografias em álbuns físicos e apago fotografias do telemóvel. É onde planeio as viagens que me levarão a outras casas, ainda que não regresse a elas nunca mais. São as memórias e as sensações, os vestígios que me vão moldando, as ruínas que sobram das tempestades, as obras que faço quando me partem uma parede: o coração.

Casa casa casa casa

A palavra que se torna doce. Suave. Quentinha. Uma manta no sofá. Uma chávena de chá. Os olhos fechados depois de um longo dia.

Cz cz cz…

E a vossa casa que som faz?

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