Ela viu um homem ao fundo, encostado na esquina de uma montra com os braços cruzados e pensou que ele já devia estar assim há muito tempo, encostado na esquina da montra com os braços cruzados, e depois pensou eu sei muito bem o que ele quer, ao passo que o homem estava a pensar em algo totalmente diferente, ou melhor, estava a imaginar que ia a pé por uma rua estreita e a rua tinha pouca luz, o chão estava molhado, porque era inverno e tinha chovido bastante nessa noite. Faltava-lhe pouco para chegar ao fim da rua, mas os seus passos retardavam-no, como se o quisessem manter ali, como se soubessem que estava prestes a acontecer um evento intenso a que ele tinha de assistir e foi então que olhou para trás e viu os faróis de um automóvel que se aproximava com uma certa velocidade, talvez exagerada para uma rua tão escura e exígua. Sentiu medo e encostou-se na esquina de uma montra.
O carro abrandou ao passar por ele e a porta de trás abriu-se. Uma mulher morta caiu aos seus pés. Depois o carro acelerou e dobrou a esquina a chiar, mas isto era pura fantasia. Não havia qualquer mulher morta aos seus pés. Foi apenas um carro que passou a uma velocidade desadequada e fê-lo encostar-se na esquina da montra, onde permaneceu estático, de braços cruzados, até que avistou a mulher ao fundo e ao vê-la levantou o braço esquerdo à altura dos olhos e esticou-o para a frente, de modo que a manga do casaco destapou o pulso.
Ao longe, ela pensou que o homem estava a ver as horas, porventura admirado com a sua presença num lugar tão sombrio em hora tão tardia. Já agora que horas serão, pensou ela e ao passar pelo homem, do outro lado da rua, sorriu-lhe, mas não lhe perguntou que horas são, não disse nada. Ele também sorriu e quis-lhe parecer que sorria para uma adolescente, uma miúda de quinze ou dezasseis anos, pensou ele, e reparou nas pernas delgadas com meias pretas que brotavam de uma saia curta quadriculada, com quadrados vermelhos e brancos, e a saia cobria-lhe as nádegas pequenas e as nádegas dançavam airosas ao ritmo da passada e a camisola preta escondia o tronco fino e os seios passavam quase despercebidos e os cabelos compridos desciam em ondas até ao meio das costas e ela sorria como todas as meninas de quinze anos sorriem para o lobo mau, pensou ele.
Sentiu imediatamente um impulso para segui-la, não com o intuito de a perturbar ou de lhe fazer mal, mas apenas para observar a frescura de um corpo de quinze anos a mover-se na noite e fá-lo-ia sem que ela o notasse, como qualquer predador.
Ele julgava que a rapariga teria uns quinze anos, mas na verdade era mais velha, três ou quatro anos mais velha, e estava a fazer o trajeto que habitualmente fazia com a mãe antes de o pai morrer, embora o fizessem mais cedo naquele tempo, quando percorriam de braço dado a baixa da cidade só pelo prazer de andar à toa, mãe e filha em desfile noturno, mas agora a mãe dormia com um homem estranho – era o sétimo após a morte do pai e ela compreendia a solidão da mãe, pois a certa altura, talvez a partir do terceiro homem, um tipo baixo, magro e de olhos saídos, que ela identificou logo como lesma e nojento, a solidão da mãe passou a ser também a sua solidão – e então começou a passear sozinha.
Hoje, sabendo que era perseguida, decidiu cortar caminho pelo beco atrás da fábrica, um edifício enorme, abandonado há muitos anos, em vez de se deslocar até à beira-mar pela rua maior, como seria sensato, e não havia luz no beco e ela sumiu-se na escuridão.
Ele pensou que devia parar ali mesmo, à entrada do beco, e voltar à sua rotina de homem simples e conformado com o nada da vida, evitar perigos em ruas escuras, evitar gente estranha no meio da noite, mas seguiu em frente. Desceu o empedrado e avançou firme e silencioso rente à parede da fábrica, com os olhos postos nas casas devolutas do outro lado, onde costumavam pernoitar vários sem-abrigo, e de repente viu a rapariga no limiar de uma porta da fábrica e percebeu que, afinal, ela estava à sua espera, como se de facto não tivesse sido ele a persegui-la, mas ao contrário, e isso constituiu uma grande surpresa para si, um golpe à falsa fé.
A rapariga olhava-o com intensidade. Tinha as mãos nas costas, os cabelos caídos sobre o peito, as pernas ligeiramente abertas. Ardia como uma bruxa na fogueira. Uma bruxa de quinze anos, pensou ele. Mas, na verdade, era mais velha.