Há um corpo inteiro suspenso sob a minha cabeça, um corpo que consegue sonhar com o tempo que foi deixando de ser absoluto. Há agora um corpo cheio de um tempo definitivo, que se inclina sobre a mesa como quem investe num abismo benigno, numa flor exasperada sobrevoando a sombra primordial, revelada apenas na flagrância de nos consentirmos temporários e intervalares.
Abro a minha mão direita e nasce-lhe um novo espinho; de alguma forma o corpo é infinito, à semelhança da beleza, que se recompõe, sem uma ordem, na sua própria finalidade. Só nós nos vemos por dentro, o outro será sempre incapaz de construir-nos nessa nudez que é um animal, um vento impenetrável que sopra contra nós. Nem sempre profundo, porém fundamental.
Abro a minha mão esquerda sem que mais um espinho me traga o fulgor de antes. No entanto, é precisamente esse que me falta, um crivo simples para poder indagar o sonho, a língua e o medo. Quase tudo em nós é insondável, ainda que uma bruma nos invada para que o tempo exista e se aprofunde em lugares que desconhecemos, para esculpir a ilusão da eternidade, um presente inabalável a que, às vezes, chamamos esperança. O resto é e será sempre do domínio da invisibilidade, até as minhas duas mãos, que, hoje, são possíveis e permanentes enquanto escrevo. Todo o assombro é íntimo e para sempre indizível, o que nos rege é o desejo profundíssimo de absoluto, como se o impossível fosse um fim em si mesmo, numa noite ao acaso em que um pássaro nos vem esgravatar o coração.
Talvez seja isso o absoluto, um corpo inteiro que será sempre belo, mesmo que velho e fustigado. Um só erro para erguer o mundo à altura do mar, como se o princípio fosse afinal a derradeira língua de um Deus fundado nesse corpo. O mistério dos mistérios, ou um espinho novo por brotar em cada mão.