O canto do autocrata

Existe um rochedo junto ao rio Reno, na Alemanha, que se eleva a 120 metros sobre as águas fluviais. É um acidente geográfico que causa uma curva no rio, com seções cobertas de pedras salientes, partes com águas pouco profundas e correntes perigosas, que ao longo dos séculos tem causado a morte a numerosos marinheiros, em particular aos desprevenidos. Este rochedo chama-se “Lorelei”, propositadamente, um nome humano, pois inspira-se nos mitos das ninfas do Reno, que guardam o ouro do rio e com o seu canto desencaminham os marinheiros.

Este rochedo tem servido de inspiração para as artes e hoje, também, deve servir de admoestação para a vida política que atravessamos. Passando do canto da sereia da Lorelei para a realidade de hoje, demasiados europeus deixam-se atualmente seduzir pelo canto do autocrata: que apela a um tempo que nunca existiu; que cria respostas ocas para problemas criados por si (mas com poder “viral” nas redes sociais); que cria uma narrativa ficcionada de sociedade, sendo o seu verdadeiro intuito reforçar apenas os mais fortes, nunca corrigindo efetivamente as injustiças.

Um autocrata exige “respeitinho” dos outros, mas é o primeiro a tirar os seus compinchas da prisão, nomeadamente aqueles que atentaram contra o Estado, a República e a Democracia. Outro autocrata diz que quer “limpar Portugal”, mas enche a sua lista com arguidos, incluindo revendedores de malas furtadas nos aeroportos. Todos tendem a usar falsos moralismos, para agradar aos mais conservadores, mas depois vandalizam, usam e abusam do património do Estado (lembre-se o Palácio de São Bento com tarjas partidárias nas janelas). Há ainda aqueles que apelidam os adversários de “canalha que não tem lugar nesta terra”, mas não têm pudor em usar a sua influência para fins eleitorais partidários.

Convém não esquecer também os autocratas que prometem a renovação (incluindo ética) e depois anunciam decisões em modo “quer queiram, quer não”. E, claro, o autocrata que não vê a floresta no meio de tantas árvores, ora cooperando com o que prometeu “limpar”, ora negando essa possibilidade.

Em tudo temos a farsa da farsa. É o canto do autocrata. Cabe ao eleitor a clarividência de ignorar esse chamamento básico, porque no fim do dia, o que menos interessa ao autocrata é o indivíduo e o cidadão comum.

Para o autocrata, o cidadão é uma mera formalidade, quiçá inconveniente, cujo voto tem que recolher no dia das eleições. Por vezes o autocrata deixa um vislumbre dos seus verdadeiros propósitos (por exemplo, quando um candidato presidencial pedia o voto “pela última vez” do eleitorado, não porque não seria mais candidato, mas porque não seriam necessárias mais eleições). Ou quando os seus aliados oligarcas fazem saudações daquilo que verdadeiramente admiram no seu âmago e que evocam os tempos mais negros do passado.

Que pode o cidadão fazer perante estes perigosos retrocessos democráticos?

Podemos pensar naturalmente que o rolo compressor é demasiado grande por ser de magnitude internacional. Mas é o nosso dever cívico fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para denunciar o brotar de mini-autocratas no nosso meio. Quando se ignoram os primeiros sinais deste comportamento, é via verde para o fim do respeito dos valores democráticos. Sejamos claro: quando a vontade de centenas de militantes partidários é varrida por debaixo do tapete jurisdicional, contrariando os princípios da transparência estatutária, é o nosso dever questionar onde está a fronteira entre o comportamento do “desenrascanço” dentro do partido (abrindo a possibilidade para comportamentos similares na governação regional) ou uma ação de apagamento da democracia. E essa é uma dúvida que nunca deveria existir num Estado de Direito.

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *