Um crime em setembro de 2012

Naquela noite, Coronel Fantasia disse aos amigos que ia ausentar-se por uns tempos à procura de um tipo que lhe tinha feito mal no passado. Quando o encontrar, disse ele aos amigos, vou matá-lo. À facada, precisou. Uma só facada há de bastar, disse ele, porque sei muito bem onde meter a faca. As pessoas são como os porcos, explicou, falando como se fosse um especialista em matar porcos e homens, um profissional de açougue, ou um psicopata, ou as duas coisas juntas, ou um especialista em anatomia do porco e do ser humano nascido agora mesmo, ou há dois minutos, ou talvez amanhã, ou noutro tempo qualquer, noutra dimensão.

Ele disse aquilo, que ia matar um tipo que lhe tinha feito mal no passado, com muita solenidade e antes que começasse a galhofa dos amigos, pois tinham dificuldade em levar a sério o que ele dizia, considerando que era sempre sonho e nada se concretizava nunca, tirou do bolso interior do casaco um embrulho feito com papel de jornal e colocou-o em cima da mesa. Depois, afastou com cautela o papel para um lado e para o outro, como se abrisse o volume para revelar o mistério mais profundo da humanidade aos amigos, e eis que diante de todos surgiu uma faca de cozinha, com cabo de madeira e vinte centímetros de lâmina reluzente.

Os amigos calaram-se de repente, todos ao mesmo tempo, e olharam espantados para a faca. Depois, olharam espantados uns para os outros. Por fim, olharam espantados para ele, Coronel Fantasia, e ele disse é com esta faca que vou matar o gajo e disse-o muito sério e grave, como se de facto fosse matar alguém com aquela faca, uma vulgar faca de cozinha com cabo de madeira e vinte centímetros de lâmina. Mas nem assim, face à exposição concreta da arma e da intenção homicida, ele conseguiu evitar a fanfarronice dos amigos, pois decorrido o período do pasmo inicial, talvez uns dez segundos, ou talvez apenas o tempo completo do universo, explodiram em gargalhadas estrondosas que chamaram a atenção de toda a gente no snack-bar.

Eram quatro os amigos a quem Coronel Fantasia se dirigia. Dois estavam na casa dos quarenta e outros dois na casa dos cinquenta. Da sua parte, a soma era de quarenta e cinco primaveras, embora a partir dos quarenta, sentindo-se subitamente amargurado com a vida, sem saber ao certo porquê, ele tivesse começado a orientar-se pelos invernos. Deste modo, para sermos precisos, temos de dizer que Coronel Fantasia contabilizava à data do inesperado desígnio assassino quarenta primaveras e cinco invernos, ainda que faltassem dois meses e quatro dias para o início do quinto inverno, marcado para 11 de novembro, no ano em que Mo Yan ganhou o prémio Nobel da Literatura. Era, pois, com esta idade que ele se preparava para matar um tipo que lhe tinha feito mal no passado. À facada. Com uma faca de cozinha. Ia matá-lo com uma única facada. Um só golpe chega, disse ele aos amigos. Como se faz com os porcos na Festa, disse ele, falando como um verdadeiro especialista em matar homens e porcos na Festa.

Os amigos, porém, riam-se.

Podem rir à vontade, disse ele.

E os amigos continuaram a rir, altas gargalhadas a ecoar no recinto, lágrimas a escorrer nas caras vermelhas em sufoco hilariante, os outros clientes também já a rir sem saber porquê, toda a gente a rir à toa no snack-bar e ele, Coronel Fantasia, suspirando como um miúdo desiludido com o seu brinquedo, ou melhor, desiludido com os amiguinhos por não apreciarem o seu brinquedo, limitou-se a dobrar o papel de jornal sobre a faca, compôs o embrulho com cuidado e delicadeza, como se protegesse um objeto sagrado, uma faca cerimonial dos Incas, por exemplo, meteu-o no bolso interior do casaco e recostou-se na cadeira.

Eram agora 22h32 e estava prestes a acontecer uma coisa extraordinária no snack-bar, mas isso é outra história. Para já, o que importa esclarecer é que ninguém tinha feito mal a Coronel Fantasia no passado. Nem no passado, nem no presente e muito menos no futuro. A verdade seja dita: ninguém lhe tinha feito mal em tempo algum, pelo menos ao ponto de merecer a morte. De resto, ele também pensou muito no assunto e como sempre chegou à conclusão de que tudo era sonho, ou talvez literatura, pensou ele, pois a literatura é da mesma natureza do sonho e mata menos, por assim dizer. Ou, se calhar, mata mais, pensou ele.

Então, desistiu da ideia e pôs-se também a rir e a beber cerveja com os amigos…

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