A quinta-feira em que ficámos com um sorriso e dissemos que sim

No penúltimo dia de 2024, pereceu a poetisa Adília Lopes. Aquelas palavras dela empoleiradas nas folhas despidas fazem-nos um bem danado. Há um poema ao qual regresso muitas vezes, A Propósito de Estrelas, – e escrevo este texto em noite de lua cheia – que termina assim: «[…] nunca saberei se me interesso por estrelas / se me interesso por um rapaz que se interessa / por estrelas já não me lembro / se vi primeiro as estrelas / se vi primeiro o rapaz / se quando vi o rapaz vi as estrelas». Descubro que o paranaense Arthur Nogueira escreveu à editora Assírio & Alvim enviando uma demo e propondo musicar este poema. A resposta não se fez tardar: «a Adília Lopes ficou com um sorriso quando ouviu o que enviou e disse que sim.» Nos dias bons, a vida – e a poesia – não precisam ser mais que isto.

Voltei a lembrar-me deste poema quando li o que escreveu a astrofísica marroquina Merieme Chadid sobre estrelas, essas «testemunhas silenciosas da história do Universo». Esta cientista participou na instalação do telescópio Paz na Antártica, pois era necessária a acalmia de luz artificial e de humanos aí vivida para poder ouvir esses astros. Merieme explica que este telescópio foi construído para funcionar durante toda a duração de uma noite polar, e porque era importante saber mais sobre o interior das estrelas, poder captar as suas mais ínfimas variações luminosas, como os batimentos do coração, e, pela primeira vez, poder escutar o murmúrio das estrelas; ou seria do rapaz?

Em Dezembro, fui a um mercado de Natal solidário. Na banca do Burkina Faso, conheci o Kevyn. Tinha uma bonomia natural e aproximei-me, pois, intrigavam-me os instrumentos de música aí expostos; por exemplo, os que as mulheres utilizavam para agradecer uma boa colheita, e o balafom, um xilofone feito com cabaças, que, em Moçambique, se chama marimba. Uma vez, trouxe um de Moçambique via Istambul e tive de demonstrar o que era aquele objeto a um agente de segurança, que, ao ouvir a música, ficou com um sorriso como o da Adília Lopes. O meu olhar acabou por se centrar no que me pareceu ser uma família de pedra-sabão. Havia quatro figuras, e o Kevyn disse-me que eram mais, mas que se haviam danificado na sua viagem para a Europa. Perguntei-lhe se não havia um Menino Jesus, e ele disse-me que sim, que se tinha estragado, mas que me oferecia. Foi assim que o presépio se montou em casa com quatro sobreviventes de uma família maior que veio de África para a Europa, e um Menino Jesus danificado, mas que, sem ele, não haveria Natal.

No passado fim de semana, o fotógrafo Alfredo Cunha voltou ao Luxemburgo para a conclusão da exposição aí patente que comemorava os seus 50 anos de carreira e os 50 anos do 25 de Abril. Foi um bonito encontro com a história, e não apenas com a portuguesa, pois em muitas das fotografias de Cunha pelo mundo (Iraque, Haiti, Roménia) se poderia ver ecos desse dia, guiados pelo olhar de Salgueiro Maia. À entrada da exposição, uma foto de esperança: uma das suas filhas, pequena, com os pés na água a tentar ver os peixes. É preciso encontrar espaços de acalmia para que, recebendo todas estas vibrações, possamos escutar essa quinta-feira, e as novas gerações que nos vão relembrando dessa necessidade de ir ver os peixes para que todos os dias possam ser quintas de Abril. Por isso, esperemos que se diga corações ao alto, e não mãos ao alto, como na Rua do Benformoso.

No mesmo fim de semana, fomos ver a exposição «Street Dreams Are Made of This», onde o fotógrafo Marc Wilmert e o jornalista Ricardo J. Rodrigues aproximaram algumas pessoas sem-abrigo no Luxemburgo, um dos países mais ricos do mundo per capita, de um sonho destas. A páginas tantas, a minha filha Laura perguntou-me: «e se elas tivessem sonhado com a paz no mundo?».

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